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Henrique Galvão, escritor e político

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Por João Alves das Neves
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In memoriam Muito tem sido dito e escrito por e contra o capitão Henrique Carlos Malta Galvão, que se tornou mundialmente conhecido por haver projetado e comandado, em 1961, o apresamento do navio Santa Maria. Celebrado pela ação política que cumpriu contra o regime de António de Oliveira Salazar, o capitão Henrique Galvão passou a combater as falcatruas praticadas pelos apaniguados do regime em Portugal e nas antigas colônias. Sem dúvida, foi uma luta desigual e sem tréguas em prol da liberdade no país natal. Nascido no Barreiro, em frente a Lisboa, em 4/2/1895, Henrique Galvão morreu em São Paulo em 25/6/1970. O tempo se esfuma e são cada vez menos os que o apoiam ou odeiam, porque as divergências ideológicas ainda hoje persistem: o comandante do "Santa Liberdade" (como ele designou o navio) não foi aplaudido pelos "abrilistas", nem dos direitistas nem dos esquerdistas. Mas se o político foi esquecido, a sua obra literária pertence para sempre à História da Cultura Portuguesa do século 20. Evidentemente, há exceções: foi publicado recentemente em Portugal o livro Andanças para a Liberdade (*), de Camilo Mortágua, que relata não só a vida do autor em Portugal e na Venezuela, mas também os preparativos do capitão Galvão, em Caracas, para desencadear a "Operação Dulcineia". E os democratas portugueses não podem esquecer os riscos enfrentados pelo capitão insubmisso. Na última página do seu livro, Camilo Mortágua descreve o fim da "viagem" no Recife e o caminho futuro: "As próximas andanças" hão de levar-nos de volta a Lisboa e à restauração da liberdade, "esperando dela, e tão só, todas as recompensas". E promete completar o relato da aventura iniciada com o "Santa Liberdade". Por seu turno, Eugénio Montoito salienta, no livro Henrique Galvão (**), "a dissidência de um cadete do 28 de Maio (1927-1952)", quando o jovem militar esteve ligado ao golpe de Estado de 1926 e à conspiração dos militares (7/2/1927) e, mais tarde, à posição de "ideólogo de excelência do colonialismo português", chegando a seguir à "experiência parlamentar" e aos motivos que o levaram ao afastamento do regime, "através daquela mesma África que tinha originado a união e a convergência política". No último capítulo do livro, Eugénio Montoito recorda o ingresso do capitão Galvão na campanha presidencial do almirante Quintão Meireles, oposicionista, e em outras fases do combate aberto ao regime ditatorial de Salazar. Henrique Galvão enfrentou de peito aberto o combate à ditadura - e a viagem com o "Santa Liberdade" foi apenas o episódio mais eloquente da sua luta antissalazarista. A "Operação Dulcineia" foi documentada em sete artigos publicados no jornal O Estado de S. Paulo (de 19/2/1961 a 26 do mesmo mês). Antes, porém, Galvão escrevera dois artigos na revista Anhembi, dirigida pelo jornalista e escritor Paulo Duarte (fevereiro e março de 1953), sobre a ditadura salazarista, e no jornal A Tribuna (27/3/1960). Mas a aventura do Santa Maria apareceu em numerosos jornais e revistas de vários países, embora o Estado tenha sido a barricada mais firme desse novo período de luta contra o fascismo português (o tiroteio alargou-se por mais de 40 artigos, além de outra quinzena de textos acerca da fauna e de certos aspectos da vida africana - o último artigo saiu em 16/10/1966). A bibliografia de Henrique Galvão é extensíssima e abrange mais de 20 volumes entre ensaios de caráter científico, obras de ficção, peças de teatro, incluindo a poesia de Grades Serradas e o romance antirracista Pele, além de quatro dezenas de livros que o biógrafo Eugénio Montoito considerou de "intervenção política e administração colonial" (cinco em torno do governo salazarista). Foi ainda tradutor de oito peças de Eugene O?Neill e mais duas de Lionel Shapiro e Jean de La Varande, a par de um livro de Pierre Goemar. E prefaciou a edição portuguesa das Obras Poéticas de Manuel Bandeira. Meu primeiro contato pessoal com o capitão Henrique Galvão ocorreu durante visita que ele fez ao jornal O Estado de S. Paulo (onde trabalhei como jornalista de 1958 a 1989), após o episódio do navio "Santa Liberdade". Convidado a trabalhar no jornal, tornamo-nos amigos. Certo dia o capitão ficou doente e avisei o dr. Julio de Mesquita Filho, diretor do Estado, que mandou marcar consulta com o médico do jornal. O clínico recomendou que fosse hospitalizado - e pediram-me que o acompanhasse à Clínica Bela Vista, em São Paulo, onde ele ficou internado por quase quatro anos. Raros amigos o visitavam e pediram-me que mantivesse a direção do jornal informada. Quando os médicos acharam que a doença do capitão era irreversível, foi solicitada a intervenção do governo de Lisboa para que ele pudesse voltar a Portugal. A resposta foi implacável: o regime comprometia-se a pagar a clínica, mas regressar, não! E no dia 25 de junho de 1970, Henrique Carlos deixou-nos. Ao velório compareceram nove pessoas, entre as quais o dr. Ruy Mesquita, atual diretor do Estado - e apenas seis portugueses o acompanharam ao cemitério paulistano de Vila Nova Cachoeirinha. Posteriormente, quando fui a Lisboa, recebi a derradeira tarefa: levar o dinheiro que ele deixara - pouco mais de 3 mil cruzeiros! - e entregá-lo à viúva, dona Maria de Lourdes Galvão. Somente em 10 de novembro de 1991 os restos mortais do capitão Henrique Galvão foram trasladados para um mausoléu do Cemitério dos Prazeres, na capital portuguesa, graças às diligências do diretor do Estado dr. José Maria Homem de Montes, que declarou em Lisboa: "Hoje, o Estado português presta a Henrique Galvão a homenagem no círculo dos que souberam ousar e não se conformar." (*) Esfera do Caos Editores Ltda., Lisboa, 2009 (**) Ed. do Centro de História da Universidade de Lisboa, 2005 João Alves das Neves é escritor português, jornalista e professor universitário, residente no Brasil E-mail: jneves@fesesp.org.br