22 de outubro de 2015 | 02h59
Não resisti e disse-lhe que me espantava vê-lo usar uma denominação já tão antiga e superada, ao que ele esclareceu tê-la aprendido com um cliente idoso que não conseguia chamar aquela rua por outro nome. A mim também essa lembrança antiga encanta. Estrada da Boiada, passagem de terra batida, ladeada de árvores centenárias, cheiro de água limpa e de flores da estação, ar puro ao sol poente... Hoje é uma via asfaltada longa e plana, que cruza a região; uma reta margeando à distância o Rio Pinheiros, embora mudando de nome em certos trechos.
A antiga Estrada da Boiada era o caminho pelo qual os pecuaristas levavam o gado para pastar e tomar água. Uma tristeza ver os rios deteriorados como estão hoje, sem falar do resto...
Na região todos conhecem a antiga Estrada da Boiada. Lindas casas foram construídas às suas margens e o tal sr. Diógenes Ribeiro de Lima ainda é esquecido em nome de uma antiga tradição.
Quando pensamos que o mundo está mudando e os tempos idos vêm ficando cada vez mais para trás, uma tradição como essa, desaparecida há mais de um século, salta de repente para mostrar que não se apaga o passado com uma penada e costumes vão passando de geração em geração de forma insistente. O ser humano sente-se inseguro para mudar seus hábitos, ainda que se refiram a detalhes inofensivos.
No entanto, quando levamos em conta os péssimos hábitos dos políticos brasileiros que insistem em usar como próprios recursos que são públicos e percebemos que, por mais punições previstas em lei que possamos ter, esses hábitos não mudam, enxergamos o quadro de um futuro absolutamente inglório. Quando Lula assumiu a Presidência da República, queixou-se da “herança maldita” deixada pelo PSDB, sem explicar detalhadamente qual seria essa herança. Hoje podemos considerar que existe, sim, uma herança maldita que afoga o governo e vem da má administração dos recursos públicos realizada pelo próprio Partido dos Trabalhadores e seus aliados, que pouco tem que ver com uma gestão voltada para os menos favorecidos, mas está intimamente ligada à mentalidade de um povo e, principalmente, de certos governantes.
Assim como as pessoas resistem às mudanças de hábitos e até a pequenas alterações do cotidiano, também os profissionais da política resistem bravamente ao respeito à linha divisória entre o público e o privado. E dessa herança maldita, infelizmente, poucos conseguiram livrar-se. Hoje vivemos o caos político que escancara os desvios incessantes, descomunais e inconcebíveis de recursos públicos que conseguiram arrasar com a Petrobrás e com o País, sob a justificativa esfarrapada de que, em nome da causa, a ética não se aplicaria aos defensores das classes desfavorecidas.
É certo que algumas instituições, como o Ministério Público Federal (MPF) e a Ordem dos Advogados do Brasil – Seção São Paulo (OAB-SP), estão envidando esforços para o aperfeiçoamento das regras de transparência administrativa e combate à corrupção. A OAB formula sugestões interessantes, como a criação do Programa Nacional de Combate à Burocracia; a redução substancial dos cargos de livre provimento e nomeação, com estabelecimento de limite geral mediante requisitos de idoneidade e capacitação técnica para a função; autonomia financeira e administrativa dos órgãos de controle interno e externo da administração pública; mudanças nas regras de financiamento de campanhas eleitorais; regulamentação e transparência do lobby; e fortalecimento das agências reguladoras, dentre outras.
Já o MPF saiu com uma sugestão inusitada no Brasil, inserida em seu site oficial, no sentido da realização de testes de honestidade, que consistiriam em “simulação de situações, sem o conhecimento do agente público ou empregado, com o objetivo de testar sua conduta moral e predisposição para cometer crimes contra a Administração Pública”. Ainda segundo a publicação do MPF, “a realização desses testes é incentivada pela Transparência Internacional e pela Organização das Nações Unidas (ONU) e é um exemplo de sucesso em alguns lugares do mundo”.
Ou seja, a ética e a integridade do agente público não são características privativas de um partido, mas são, sim, atributos próprios de algumas (poucas) pessoas. Dinheiro público é para ser usado em favor de toda a sociedade, em busca do bem comum e do aprimoramento dos serviços públicos, jamais podendo prestar-se ao enriquecimento pessoal dos governantes da vez.
Esqueçam Marx, Lenin, Trotsky. O governo que atualmente se intitula “socialista” está seguindo uma tradição espúria que pouco tem de interesse social, mas está ligada ao patrimonialismo. A existência dos programas Bolsa Família e Minha Casa, Minha Vida não justificam o desvio de recursos públicos nem podem assegurar a impunidade. O que temos de concreto é uma estrada da boiada que não tem começo nem fim, mudou de nome, mas continua sendo a mesma lama, a mesma cena de horror de um país que não consegue virar a página de suas desgraças.
* LUIZA NAGIB ELUF É ADVOGADA, FOI PROCURADORA DE JUSTIÇA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DE SÃO PAULO ESECRETÁRIA NACIONAL DOS DIREITOS DA CIDADANIA; É AUTORA, ENTRE VÁRIOS OUTROS LIVROS PUBLICADOS, DE ‘A PAIXÃO NO BANCO DOS RÉUS’
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