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Honduras, Paraguai e Venezuela

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Por Ives Granda da Silva Martins
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A coerência não é a maior virtude dos ideólogos. O respeito à lei é algo descartável quando a ideologia a ser preservada está em jogo. Todos acompanharam o burlesco episódio de Honduras (em 2009). Determina o artigo 239 da Constituição desse país que o dirigente que pretenda alterar o regime eleitoral, para admitir um segundo mandato, seja afastado do poder e inabilitado para exercê-lo por dez anos. Ora, o então presidente Manuel Zelaya, contrariando determinação do Parlamento e da Justiça, convocou plebiscito para obter a reeleição e foi, por essa razão, destituído da presidência. O eminente constitucionalista Dalmo Dallari, em brilhante artigo para a Folha de S.Paulo, demonstrou o rigoroso cumprimento da Lei Suprema na deposição daquele mandatário. E tanto foi perfeito o "impeachment" que, no prazo constitucional, houve novas eleições e foi, democraticamente, eleito um presidente. Assim não entenderam, entretanto, o presidente Lula e seus parceiros bolivarianos. O mesmo ocorreu com o Paraguai. O artigo 225 da Constituição paraguaia permite o afastamento do presidente por crimes políticos, crimes comuns e má administração. O presidente Fernando Lugo, sem nenhum apoio popular, no Senado e na Câmara dos Deputados, foi deposto por incompetência. Afastado por má administração pelo Parlamento e com confirmação pela Suprema Corte, continuou morando livremente em Assunção, sem que houvesse manifestações populares de expressão a seu favor e sem necessidade de tropas nas ruas para garantirem a decisão do Parlamento e da Justiça. Novamente os ideólogos do poder, afinados com os governos de Hugo Chávez, Cristina Kirchner, Evo Morales e Rafael Correa, além de José Mujica, declararam que houvera rompimento da democracia, suspenderam o Paraguai do Mercosul - em decisão muito mais rápida que a do afastamento do presidente Lugo - e aceitaram, de imediato, a Venezuela como participante do bloco, nada obstante não ter esse país aprovado o acervo normativo comunitário. Em meu depoimento no Senado Federal sobre o tema, cheguei a ironizar o pedido de ingresso, por falta de aceitação da totalidade do acervo normativo, sugerindo aos senadores: "Não digam sim nem não, digam talvez", pois só após sua aceitação poderia a Venezuela ser admitida. Sem ter essa garantia e sem o apoio do Paraguai - afastado por ter cumprido rigorosamente sua Constituição - a Venezuela foi admitida, sendo sua admissão resumida em gráfica frase do presidente do Uruguai: "A nossa decisão não foi jurídica, foi política". Agora, em relação ao novo parceiro, em que, nitidamente, sua Constituição foi dilacerada, pois a governa desde 11/1/2013 um ditador que não foi eleito pelo povo - visto que lá o vice-presidente é de livre nomeação do presidente e seu mandato se encerrou em 10 de janeiro -, o Brasil, contra a clareza do artigo 231 da lei imposta pelo próprio Chávez, dá pleno apoio ao golpe, sob a alegação de que o enfermo presidente, cujo mandato se iniciaria em 10/1/2013, foi eleito pelo povo, ignorando que o vice-presidente, que é quem está governando a Venezuela, não o foi! É de lembrar que a incapacidade física ou mental permanente do presidente (artigo 233) deveria ser atestada por uma junta médica designada pelo Tribunal Superior de Justiça, que, após o expurgo realizado por Chávez na Justiça, não só pisoteou o artigo 231, como não cumpriu o 233. Até hoje ninguém sabe, na Venezuela e no mundo, qual o seu real estado de saúde. Ora, o Itamaraty, sob o comando dos presidentes Lula e Dilma - que, pessoalmente, admiro, mas de quem, neste ponto, divirjo diametralmente -, utiliza-se de dois pesos e duas medidas, esfrangalhando o Direito Internacional e desfigurando por inteiro a respeitadíssima Casa de Rio Branco. Estou convencido de que parte dos problemas brasileiros de alta inflação, baixo PIB, último lugar de desenvolvimento entre os países latino-americanos, sem grande perspectiva de crescimento - pois amarrado a uma esclerosada máquina administrativa e deliberadamente complexo, confuso e arcaico sistema tributário -, são decorrentes dessa postura ideológica, que leva o Brasil a submeter-se às políticas de nossos vizinhos, esquecendo-se de que, como nação soberana, nos deveríamos comportar como os grandes emergentes, livres de posições ideológicas arraigadas, tratando de igual para igual os países desenvolvidos e superando antigos complexos de inferioridade. Sem isso não passaremos ao mundo a mensagem de um país onde existem segurança jurídica e robustez das instituições democráticas. Como presidente do Conselho Superior de Direito da Fecomércio, tenho sido algumas vezes consultado por investidores estrangeiros e quando exponho a complexidade do sistema tributário brasileiro sinto um desinteresse crescente em terem o Brasil como opção de investimentos - o que me faz lamentar profundamente. Creio que a presidente Dilma, que é economista, poderia refletir sobre as verdadeiras razões que estão levando o Brasil a esta situação de desfiguração institucional. Certa vez, em palestra proferida na Universidade de Coimbra com o ex-presidente Mário Soares, fez-me ele, durante o almoço que se seguiu às conferências, a observação pitoresca de que administrara Portugal sem ser influenciado por ideologias. Disse-me ele: "O povo não come ideologia, come pão". E para que coma pão não é necessária apenas uma política de incentivo ao consumo, mas, principalmente - o que inexiste -, uma filosofia de gerar produção, competitividade, tecnologia, para podermos, no futuro, manter o consumo, e não vê-lo reduzido, por falta de crescimento.

* Ives Granda da Silva Martins é professor emérito da Universidade Mackenzie, das escolas de Comando e Estado Maior do Exército (ECEME), Superior de Guerra (ESG) e da Magistratura do Tribunal Regional Federal - 1ª Região.