05 de dezembro de 2014 | 02h04
A própria campanha política foi uma narração dos marqueteiros: progressistas contra reacionários, desprendidos reformadores sociais contra uma elite obtusa. Muitos dos vencedores não acreditam nessa história. Sabem que o bem e o mal se entrelaçam e, passada a campanha, é preciso aproximar-se um pouco mais da realidade.
O PT contou sua história: decidiu, a partir de agora, expulsar os corruptos do partido, dando-lhes o direito de defesa. Em tese, assino embaixo. Mas há algumas laranjas do seu Francisco nesse enredo. No penúltimo escândalo, o do mensalão, os condenados foram saudados por muitos militantes como guerreiros do povo brasileiro. Uma nota completa voltaria ao tema, ou para dizer que se equivocou ou para confirmar a cínica tese de que não houve corrupção da base aliada. Nesse caso, sugiro a fórmula de Homer Simpson: seu único crime foi violar a lei.
O escândalo do petrolão segue seu curso. Esta semana foi denunciado mais um intermediário da propina. Um antigo assessor de Nei Suassuna, que foi senador pelo PMDB. Questionado sobre a atividade do ex-assessor, disse não acreditar que estivesse relacionado com o escândalo da Petrobrás: era algo em altas esferas, muito alto para ele. Pode ser verdade ou mais uma historinha, ao menos admite que se o assessor tivesse mais estatura, no universo das propinas, assaltaria também a estatal. E que na corrupção existe o topo de linha e uma segundona cujos times não jogam no campo da Petrobrás.
Uma outra narração é essa de cortar os gastos. O novo ministro da Fazenda é especialista nisso e trouxe grande otimismo ao mercado. Houve gente comemorando o crescimento de 0,1%. Os sinais são ambivalentes, pois o governo, ao mesmo tempo que fala em cortar, pode estar querendo também arrecadar mais. Fala-se na volta da Cide e da CPMF, que, ao lado dos aumentos da gasolina e da energia, iria sobrecarregar a sociedade. Talvez Dilma esteja muito ocupada com a formação do novo Ministério. Um novo presidente eleito leva vantagem nessa performance: ainda não é o presidente, não precisa responder às questões que não param de acontecer.
Nesta semana em que o mundo discutiu as mudanças climáticas no Peru, creio que duas preocupações deveriam ocupar algum espaço na agenda do governo. As divergências entre Minas, Rio e São Paulo em torno do uso do Rio Paraíba do Sul serão mediadas pelo ministro Luiz Fux. No meu entender, isso é tarefa para a Presidência, que deve ter a visão global de nossos recursos hídricos.
O petrolão suscita outro tema para além do suborno. Dilma está longe de considerá-lo, pois dedica seu tempo agora ao loteamento dos cargos, plantando as sementes do próximo escândalo. Trata-se da influência das empreiteiras no planejamento energético do Brasil. Elas querem construir e a construção ostensiva interessa ao governo, assim como as fortunas doadas à campanha eleitoral. Esse mecanismo inibe os investimentos em eficiência energética. Afasta-nos de um movimento forte no mundo a julgar pelo relatório da ONU.
Um dos polos nessa busca pela sustentabilidade é a produção descentralizada de energia, o outro é a eficiência energética. Nada disso interessa às empreiteiras, logo, nada disso interessa também aos políticos. Especialista em energia, a presidente é muito distante. O ministro Lobão, de certa forma, já não está entre nós. A crise hídrica atravessa mandatos. Ela diz respeito não só à água, como à matriz energética brasileira. É mais complicada do que construir barragens e hidrelétricas.
Nesses temas um dirigente máximo não pode vir com as laranjas do seu Santana. Estamos diante de um imprevisível ano novo. O governo vai só economizar ou nos fará gastar mais? Até onde não conflitam o propósito de economizar com a compra de deputados, a montagem de 39 ministérios? Quem garante que os corruptos do mensalão não se transfigurem, de novo, em guerreiros do povo brasileiro? Guerreiros com guerreiros fazem zigue, zigue, zá: tudo pode acontecer.
Mas o sistema de cumplicidade entre governo e empreiteiras, o universo de estatais aparelhadas, todo esse mundo de concreto armado é um bloqueio político e econômico. Ele pode ruir. Pode também não acontecer nada. Neste caso, vão precisar de muitas historinhas, algo como mil e uma noites, para nos consolar.
Não há consolo para os desempregados da Iesa, empresa envolvida no escândalo do petrolão. Passei o fim de semana em Charqueada, a 80 km de Porto Alegre. A cidade decretou calamidade pública pois vai perder 6 mil empregos, contando os indiretos. Filmei equipamentos orçados em US$ 600 milhões expostos ao sol, paralisados. Mas não eram os milhões que me interessavam, e sim como o escândalo repercutiu na vida das pessoas. Num comício, sábado, o prefeito afirmou: eles vieram com o aval da Petrobrás, prometeram investir R$ 900 milhões, como iríamos saber que era uma picaretagem?
O Ministério do Trabalho está presente em Charqueada para reduzir os danos. Mas que historinha contar a uma cidade que depositou seus sonhos no projeto, abriu novas lojas e restaurantes e descobre que a licitação foi fraudada e o dinheiro se perdeu em propinas e campanhas políticas?
Em Charqueadas, um dos centros da região carbonífera do Rio Grande do Sul, o governo está queimado.
*Fernando Gabeira é jornalista
Encontrou algum erro? Entre em contato