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Investigar dentro da lei

É preciso combater a corrupção sem qualquer tipo de tolerância com a ilegalidade

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Por Redação
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É preciso combater a corrupção sem qualquer tipo de tolerância com a ilegalidade. Justamente por isso é imprescindível que o combate ao crime seja feito dentro do mais estrito respeito à lei. Recente decisão do ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal (STF), é um alerta para a ilicitude de uma prática que vem sendo tolerada como se fosse um modo idôneo de investigação.

O ministro Celso de Mello suspendeu uma ação penal contra quatro empresários em razão de as interceptações telefônicas, que serviram para produção de provas, terem sido fundamentadas apenas genericamente, sem a devida especificação. No caso, ao longo de dois anos foram gravadas conversas telefônicas “autorizadas em decisões estereotipadas, consubstanciadas em textos claramente padronizados”, diz a decisão do ministro.

A jurisprudência do STF admite a legalidade de sucessivas prorrogações de interceptações telefônicas. Para tanto, é necessário demonstrar, em cada renovação, “mediante fundamentação juridicamente idônea, a indispensabilidade de tal diligência, o que parece não ter ocorrido no caso”, ponderou o ministro Celso de Mello. Um dos despachos do juiz, por exemplo, mencionava como crime investigado o tráfico de entorpecentes, e o âmbito da investigação contra os empresários era suposta fraude em licitações, formação de quadrilha e falsidade ideológica.

A proibição de investigações genéricas, sem objeto definido, é uma importante garantia individual, decorrência direta do Estado Democrático de Direito. Para o poder público abrir uma investigação contra um cidadão, ele precisa ter antes indícios concretos da existência de crime. O STF até permite a instauração de procedimento investigatório com base em denúncia anônima, desde que, antes da sua instauração, a autoridade policial constate, mediante diligências preliminares, a verossimilhança dos dados informados pelo delator anônimo. Caso contrário, a investigação está fora da lei.

Esses cuidados não são simples formalidades. Caso fosse permitido investigar genericamente, sem indícios concretos, o poder público poderia perseguir arbitrariamente qualquer cidadão, mesmo que ele não tivesse apresentado motivo algum para ser considerado suspeito de algum crime.

É de reconhecer que o STF tem cumprido o seu papel de guardião das garantias individuais, reafirmando a necessidade de que os juízes fundamentem com rigor as medidas investigativas invasivas, tais como buscas e apreensões, quebras de sigilo e escutas telefônicas. Esse respeito à esfera individual não é encontrado, no entanto, em algumas decisões de primeira instância. Às vezes, parece bastar uma genérica disposição de combate ao crime para que medidas investigativas sejam autorizadas. Outras vezes se aproveita a descoberta de um específico indício para abrir investigação indistinta sobre a vida de uma pessoa.

Em tempos de delações premiadas, não é difícil encontrar “indícios” contra alguém. Às vezes, a simples menção de um nome, num depoimento, sem nem mesmo vinculá-lo à prática criminosa, é considerada como justificativa para transformar o cidadão em suspeito e, a partir daí, investigar toda sua vida.

Abuso ainda maior foi noticiado em outubro de 2016, em razão de uma denúncia de suposto desvio de finalidade no uso da Polícia do Senado. Na ocasião, ficou-se sabendo que agentes policiais teriam instalado, em residências em Brasília, algumas escutas ambientais, o que é terminantemente ilegal.

O combate ao crime não é desculpa para uma atuação investigativa fora da lei. Além de ser um contrassenso – como se os agentes estatais não estivessem submetidos aos limites legais –, uma atuação assim é ineficaz. Diante da escassez de recursos do Estado, não pode ser bom método alocar os poucos recursos disponíveis em investigações genéricas, sem indícios concretos. Até por isso é preferível investir os recursos naqueles casos em que há elementos a indicar concreta e especificamente a ocorrência de crimes.