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Kirchnerismo passado a limpo

Quase três anos após o fim de seu segundo mandato, a ex-presidente argentina se vê acossada por esqueletos que começam a sair dos seus armários

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Por Redação
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Uma sucessão de escândalos marcou o período de Cristina Kirchner na Casa Rosada, sede do governo argentino. Entre 2007 e 2015, não foram poucas as acusações que pesaram – algumas ainda pesam – contra a ex-líder populista. Até o diagnóstico de um câncer, não confirmado, foi usado como cortina de fumaça para tentar encobrir casos mais sérios, como corrupção envolvendo a ex-presidente e seus assessores mais próximos, censura à imprensa e suspeitas de uma conspiração entre os governos da Argentina e do Irã a fim de abafar as investigações sobre o atentado contra a Associação Mutual Israelita Argentina (Amia), que matou 85 pessoas em 1994.

Quase três anos após o fim de seu segundo mandato, a ex-presidente se vê acossada por esqueletos que começam a sair dos seus armários. No dia 22 deste mês, o Senado argentino, atendendo a um pedido da Justiça em função da prerrogativa de foro da ex-presidente, hoje senadora, autorizou a entrada da Polícia Federal em três residências de Kirchner em Buenos Aires, Santa Cruz e El Calafate. As diligências foram solicitadas pelo juiz Claudio Bonadio, que conduz os processos da chamada Operação Diários da Corrupção, em que Cristina Kirchner figura como principal ré, acusada de ter recebido propinas milionárias de empresários interessados em fechar contratos de obras públicas com o governo. O nome da operação faz alusão aos oito cadernos escolares nos quais Oscar Centeno, ex-motorista de Roberto Baratta, braço direito do ex-ministro do Planejamento de Cristina Kirchner, Julio de Vido, escreveu diários detalhando os pagamentos de propina a membros do governo durante cerca de dez anos. Oscar Centeno celebrou um acordo de colaboração com as autoridades argentinas.

Os paralelos com a Operação Lava Jato não são acidentais. “Nós vivemos olhando para a Lava Jato. Diziam que a delação premiada aqui não funcionaria como no Brasil, mas nós já temos nossos arrependidos”, disse ao Estado o secretário de Fortalecimento Institucional do governo argentino, Fernando Sánchez. 

As similitudes entre o caso argentino e o caso brasileiro valem tanto para a atuação dos investigadores como para a dos investigados. Tal como cá, Cristina Kirchner também se vê como “vítima” de um “complô” entre a imprensa, setores do Poder Judiciário, do Ministério Público e do governo do presidente Mauricio Macri, que lhe sucedeu em dezembro de 2015. Não há conspiração. O que há é um robusto conjunto de provas reunidas contra a ex-presidente e alguns de seus ministros. Tampouco merece crédito a acusação, feita por Kirchner, de uma “conspiração” patrocinada pelo governo de Mauricio Macri. Um dos implicados na Operação Diários da Corrupção, Ángelo Calcaterra, é primo do atual presidente. Ex-dono de uma das empreiteiras envolvidas no escândalo, Calcaterra também é suspeito de ter atuado no Brasil e aparece em investigações da Operação Lava Jato.

A busca na casa de Cristina Kirchner em El Calafate, que durou três dias, encontrou uma série de dossiês sobre o juiz Claudio Bonadio e sobre o Grupo Clarín, um dos grupos de comunicação mais críticos ao kirchnerismo. Investiga-se agora se estes relatórios de inteligência foram produzidos por órgãos de Estado – é comum que um presidente da República leve documentos desta natureza para ler em casa – ou se são fruto de espionagem requerida por Cristina Kirchner contra seus desafetos, principalmente o juiz Claudio Bonadio. Além de investigar os casos de corrupção que envolvem a ex-presidente, Bonadio é o juiz que determinou a reabertura do caso Amia após a morte suspeita do procurador federal Alberto Nisman, que conduzia a investigação sobre um suposto acordo entre Cristina Kirchner e o governo de Teerã para acobertar os autores do atentado em troca do fortalecimento das relações comerciais entre os dois países.

A Argentina já deu mostras de que não costuma fugir do enfrentamento das grandes questões nacionais. Chegou a hora de passar o kirchnerismo a limpo.