
28 de abril de 2013 | 02h03
Esse é apenas um retalho da moldura que abriga leis não cumpridas, Justiça lerda, projetos casuísticos, prioridades invertidas, improbidade administrativa, decisões provisórias, banalização da violência, tibieza de governantes e culto ao individualismo, entre outros vetores de nossa vida social e política.
O que chama a atenção no episódio do marronzinho é a resposta da CET, da qual se pode pinçar o discurso reativo de nossa burocracia: "Não temos nada com isso, cumprimos rigorosamente o dever, condutas pessoais não estão sob nossa égide". Eis a viseira que tampa o olhar lateral das estruturas do Estado, preocupadas em ficar longe de denúncias e distribuir culpas a outros gestores, jamais avocando a si parcela (mínima que seja) de erros e desvios. Não seria mais razoável que, em face de situações como aquela, a administração do trânsito viesse a público proclamar seu dever com a formação dos quadros, significando emprego correto de equipamentos, treinamento intensivo de habilidades profissionais, campo de abrangência das leis e, em complemento, orientação psicológica, de modo a integrar condutas pessoais à planilha profissional?
O desleixo é um dos maiores obstáculos à modernização da gestão pública nas três instâncias federativas. Os maus exemplos vêm de cima, causando o efeito dominó da ineficiência. A primeira pedrinha derruba a segunda, que derruba a terceira, e assim por diante.
Veja-se o caso da Lei n.º 11.705, sancionada pela presidente Dilma Rousseff em 20/12/2012, que tornou mais rigorosa a punição de motoristas alcoolizados. Necessária para diminuir o índice de acidentes - o Brasil está em quinto lugar no ranking de recordistas de acidentes de trânsito -, no início a lei correspondeu às expectativas: registrou-se sensível queda no número de acidentes. Ao correr do tempo, a fiscalização relaxou, tanto pela falta de bafômetros quanto pela recusa dos motoristas a se submeterem ao teste. Nada surpreendente. As leis por aqui começam agigantadas e acabam banalizadas. Ou, para não perder o contraponto, leis secas acabam molhadas. A água do adjetivo serve para traduzir o amaciamento do ânimo de agentes públicos, a começar das polícias, que acabam lavando a mão na bacia dos infratores. "Para não ser multado fulano molhou a mão do guarda", dito popular.
A incúria é doença crônica da administração pública. Veja-se o caso das agências reguladoras, criadas para controlar serviços públicos, objetivando harmonizar os interesses do consumidor, como preço e qualidade, com os do fornecedor, como viabilidade econômica das atividades comerciais, sempre obedecendo aos preceitos legais. Cumprem suas funções? De maneira precária. Exemplo é o caos nos aeroportos em algumas épocas do ano. Companhias atrasam e cancelam voos sem aviso prévio, extraviam bagagens, aumentam tarifas, praticam overbooking, diminuem espaços entre as poltronas do avião e passam a cobrar por serviços antes gratuitos. Reclamar a quem? A Anac, que deveria fiscalizar as companhias, faz ouvidos de mercador.
Com uma ou outra exceção, a falta de rigor, leniência e politicagem ditam o modus operandi dos órgãos de controle de serviços essenciais. Juntando o desleixo à esperteza, forma-se a teia dos esquemas de corrupção que se espraiam pela malha administrativa. Não há remédio que dê jeito em tumores adquiridos nos primórdios de nossa civilização.
Os cartórios são a prova eloquente do passado ressuscitado, os bastiões da cultura arcaica. Qual a sua serventia senão mostrar que a palavra não serve para nada? Que a verdade só existe quando autenticada com um selo e firma reconhecida? Firma reconhecida significa que a assinatura do cidadão tem de ser igual à que registrou no cartório. A partir dessa exigência se constroem catedrais de papel: atestado de nascimento, de residência (conta de luz, água, etc.), de boa conduta (para provar que não é sonegador inveterado), de saúde e de óbito (pessoa viva com atestado de óbito tem dificuldade de provar que não entrou no caixão). Sicrano é pobre? Tem de comprovar, por atestado de cartório, a condição de pobreza.
Hélio Beltrão, em julho de 1979, tentou acabar com essas maracutaias por meio do Programa Nacional de Desburocratização. Perdeu a guerra. Hoje a pilha de documentos do cidadão atinge os píncaros.
Nos EUA, após a tragédia do 11 de Setembro, instituiu-se a obrigatoriedade da carteira de identidade, que não existia. Uma celeuma. Já por estas bandas documentos são usados como burla. A carteira de estudante, que propicia desconto de 50% na compra de ingressos em teatros, shows, cinema, passou a ser usada por quem não tem tal direito. Exemplo de insanidade? O título de eleitor. Só vale se o portador levar documento de identidade com foto.
A malandragem avança sob a égide de lições não tão cívicas. Faça o que eu digo, não faça o que eu faço. Aos amigos, pão; aos adversários, pau. Nossa balança tem dois pesos e duas medidas. E a lei? Ah, é pra inglês ver.
GAUDÊNCIO TORQUATO, JORNALISTA, PROFESSOR , TITULAR DA USP, É CONSULTOR POLÍTICO E DE COMUNICAÇÃOTWITTER: @GAUDTORQUATO
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