Imagem ex-librisOpinião do Estadão

Língua e poder

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Por Denis Lerrer Rosenfield
3 min de leitura

A manipulação da língua é um símbolo do exercício autoritário do poder. As palavras são usadas discricionariamente, segundo o arbítrio dos governantes que pensam que podem tudo fazer. Nem os limites vernaculares são mais observados. Como as aparências são superficialmente guardadas, pode-se ter a impressão de que o Estado de Direito está sendo conservado, quando, na verdade, está sendo quebrado. A questão quilombola, no Brasil, é um exemplo flagrante de uma mentalidade autoritária que se esconde atrás de uma suposta luta pela igualdade racial. O racismo é incrementado em nome de sua reparação, com sérios perigos para a democracia. O artigo 68 dos Atos das Disposições Constitucionais Transitórias da nossa Constituição estipula que ''''aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos''''. Em bom português, isso significa, seguindo o Houaiss, que quilombo é ''''um local escondido, geralmente no mato, onde se abrigavam escravos fugidos'''', ou, ainda, uma ''''povoação fortificada de negros fugidos do cativeiro, dotada de divisões e organização interna (onde também se acoitavam índios e eventualmente brancos socialmente desprivilegiados)''''. Logo, trata-se de um lugar onde escravos fugidos se abrigavam, o que supõe uma unidade territorial habitada, longe dos centros urbanos por uma questão de defesa. Estabelece-se uma relação direta entre um grupo racial (mas não somente por incluir índios e brancos) e uma terra determinada, na qual mora. O legislador de 1988, na Constituinte, pensou, evidentemente, nesta definição ao redigir o artigo 68, e não numa outra, que poderia ser aleatoriamente inventada. Ele falava português. Ora, o Decreto 4.887, de 20/11/2003, é um ato administrativo do presidente da República, que não poderia regular um dispositivo constitucional, que exige lei complementar. O arbítrio começa aqui. Mais grave, no entanto, é o fato de ele utilizar uma outra definição de quilombo, algo que não estava previsto e pensado, nem poderia estar, em 1988. Eles teriam sido os futurólogos de novas invenções. Estaríamos no reino da ficção científica. Em seu artigo 2º, o decreto estipula: ''''Consideram-se remanescentes das comunidades dos quilombos, para os fins deste Decreto, os grupos étnico-raciais, segundo critérios de auto-atribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida. @ 1º - Para os fins deste Decreto, a caracterização dos remanescentes das comunidades dos quilombos será atestada mediante autodefinição da própria comunidade.'''' Ora, o conceito de quilombo utilizado pelo decreto e pelos movimentos sociais em geral perde o seu significado de povoação, unidade territorial, para significar uma genérica comunidade de cor, de cultura, de sentimentos e afinidades. Tudo nela passa a caber. Sob essa ''''definição'''', quilombo vem a significar todo descendente de escravos em qualquer lugar, sem nenhum vínculo territorial. A rigor, qualquer grupo de indivíduos da cor negra, na cidade ou no campo. Entra aqui em linha de consideração o critério da ''''autodefinição'''' e da ''''auto-atribuição'''' de propriedades, segundo o arbítrio de ''''movimentos sociais'''' e de ''''ONGs'''', com o respaldo de setores da academia. Se o decreto presidencial utiliza uma outra definição, baseada, aliás, na autodefinição, ele usurpa claramente a função legisladora. O presidente coloca-se como legislador acima da Constituição. A utilização de novos critérios, ditos ''''científicos'''', não tem nada que ver com o que foi pensado, definido e estipulado por uma Assembléia Constituinte. Ou seja, um grupo de militantes, que se dizem antropólogos, e políticos comprometidos com uma ''''causa'''', e não com a verdade, se tornam os verdadeiros ''''constituintes''''. A referência à Constituição é uma mera fraude que se torna ''''legal'''' pelo ato arbitrário de um decreto presidencial. Não bastasse isto, há também igrejas internacionais - Norwegian Church Aid (NCA), Ajuda da Igreja da Noruega; World Council of Churches (WCC), Conselho Mundial de Igrejas; Church World Service (CWS); Christian Aid; United Church of Canada (UCC), Igreja Unida do Canadá; Church Development Service, Serviço das Igrejas Evangélicas na Alemanha para o Desenvolvimento; The Primate''''s World Relief and Development Fund (PWRDF), Igreja Anglicana do Canadá -, a Fundação Ford e a própria União Européia que financiam ONGs voltadas para a questão quilombola, como é o caso da ONG Koinonia. Será que essas ONGs e seus apoiadores financeiros nacionais e internacionais se tornaram também os nossos novos constituintes? Outros países, fundações e igrejas passaram a demarcar o nosso território? São eles que definem as terras e as propriedades que serão desapropriadas? São eles os portadores da ''''nova definição'''', da recente ''''boa nova'''' que vai determinar o novo mapa brasileiro? Já há um novo mapa. Elaborado pela Universidade de Brasília, a pedido do governo, ele serve como orientação para as ações do Incra e para as invasões. Uma fatia significativa do território nacional será, então, literalmente recortada. O MST, contudo, considera esse mapa desatualizado por incluir ''''apenas'''' 2.260 comunidades, que, segundo a ''''autodefinição'''', já remontariam a 4 mil. Um novo mapa se torna, portanto, necessário! O Brasil presencia um outro tipo de inflação, a de quilombolas, que não pode ser controlada pelo Banco Central! Quando nem a língua é mais respeitada, é porque o autoritarismo progride. Ela passa a ser controlada por um grupo de ''''iluminados'''', profetas sociopolíticos cuja única função parece ser trair a verdade, fazer avançar a sua ''''causa'''' e deformar o vernáculo. A usurpação e a deturpação se tornam a nova regra. A serviço de quem?