Imagem ex-librisOpinião do Estadão

Luz, afinal?

Exclusivo para assinantes
Por Fernando Henrique Cardoso
4 min de leitura

A reunião do G-20 em Londres está sendo saudada com alívio. Finalmente os líderes mundiais começam a acertar o passo. Foi preciso uma crise dessa gravidade para despertá-los para a natureza da questão: há um descompasso no plano mundial entre as formas institucionais e o mercado. Disso há muito se sabia. Nos anos 90, quando a globalização financeira começara a se fazer sentir com força, o problema já se colocava: a falta de regras internacionais mais objetivas complicava a situação de vários países que, eventualmente, nada tinham que ver com o estopim da crise. Desde então não faltaram vozes isoladas a clamar por uma reordenação global, não só do mercado, mas das instituições financeiras e da sua regulação. Clamava-se, ainda, por uma reordenação comercial (vejam-se os esforços de Doha), pela reordenação das políticas de meio ambiente (os acordos de Kyoto), pela reordenação bélica (com o empenho nos tratados de não proliferação atômica ou no controle dos mísseis), pela reforma do Conselho de Segurança, e assim por diante. Até mesmo os esforços globais de redução da pobreza e de melhoria da qualidade de vida foram objetos dos acordos que resultaram nos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio, aprovados pela ONU em 2000. Tudo isso caminhou a passos de tartaruga porque não é fácil complementar as ações que se devem dar no plano nacional com as que são de outra natureza e dependem de regras e decisões globais. Desde Kant se sabe que a Paz Universal requer um Direito Universal. Por que as finanças globalizadas escapariam dessa condição? Mas também se sabe que o fracasso da Liga das Nações, se não foi responsável pela 2ª Grande Guerra, abriu espaço para que a crise de 1929 despedaçasse o mundo em isolacionismos protecionistas e, no final, em guerras de conquista. Foi pela visão generosa de um mundo de paz e prosperidade que Roosevelt - como se vê em sua correspondência com Stalin durante a guerra - cedeu tanto aos soviéticos. Queria construir a ONU mantendo a União Soviética comprometida com a ordem global. Apesar da guerra fria e de tantos avatares mais, a ONU evitou uma guerra mundial. Hoje, diante da impossibilidade de os Estados nacionais controlarem a crise financeira, o revigoramento da ordem global começa a ganhar fôlego. Até aqui, com a impotência das instituições de Bretton Woods para enfrentar a maré de papéis tóxicos espalhados pelo mundo, o que vimos foi o banco central dos EUA e o Tesouro americano espalhando recursos aos trilhões de dólares, tentando irrigar o sistema bancário. Os resultados, entretanto, foram magros até agora. O mercado permanece amortecido pelo temor dos bancos em fazer novos empréstimos e pela preferência dos eventuais tomadores em se resguardarem. Só deseja empréstimo quem já está quebrado. Os europeus, ingleses à frente, mais prudentes, injetaram capital nos bancos e assumiram parcialmente o seu controle. Consequentemente, surgiu um cisma que poderia paralisar as decisões em Londres: de um lado, a Europa tratando de impedir que os estímulos fiscais arruínem o futuro de sua moeda e, do outro, os americanos, donos da mágica de produzir dinheiro lastreado na confiança no governo e em sua economia, provendo liquidez e aumentando os déficits sem muita preocupação com equilíbrios fiscais. Entretanto, como o mundo agora é mais plano, os chineses deram o grito de alarma pela boca do primeiro-ministro: e se o dólar desvalorizar? Por certo, o problema hoje não é a inflação, mas a deflação; as taxas de juros americanas podem se manter rentes a zero. Mas será assim amanhã, se a dívida crescer a tal ponto que coloque em questão, ao longo do tempo, a capacidade de recuperação dos orçamentos americanos? Foi significativo ver que no G-20 se falou de uma cesta de moedas que sirva de reserva e houve a decisão de aumentar o capital do FMI e até mesmo de utilizar os direitos especiais de saque, uma espécie de dinheiro internacional próprio do FMI. Noutros termos: há no horizonte distante o que Keynes previra e desejava, a formação de uma Autoridade Monetária Central. Não será o Banco Central Europeu uma antevisão do que poderá ocorrer em décadas adiante? O Conselho de Estabilidade Financeira não poderá exercer papel efetivo na coordenação das políticas e em seu controle? Reordenação mais profunda do sistema financeiro global implicaria um novo arranjo político, do qual estamos distantes. Mas assim como o unilateralismo dos neoconservadores e do governo Bush esticou a corda nos dois lados, invadindo países e dando licença aos mercados para fazer o que quisessem sem consultar ninguém, a atitude do governo Obama (Hillary Clinton falando até de incluir os talibãs "moderados" (sic) na mesa de negociações) prenuncia algo melhor para o mundo. Gordon Brown foi perspicaz e procurou os emergentes para aumentar suas chances de liderança, apostando em mais regulamentação. Isso, com maior legitimidade, ampliando-se o número de atores que decidem, talvez seja a fórmula para se falar com mais seriedade em um outro e melhor mundo. George Soros, voz dissidente e clarividente nas finanças, colocou a outra condição para um ponto de partida positivo: será necessário prover muito dinheiro para evitar tragédias maiores nos países pobres e em algumas economias emergentes. O G-20 falou de US$ 1 trilhão. É um começo. Os ativos globais perderam de US$ 30 trilhões a US$ 50 trilhões! Os socorros de todo tipo, incluindo estímulos fiscais, devem roçar os US$ 2 trilhões, as promessas vão aos US$ 5 trilhões. Em Londres os líderes esperam que lá pelo fim de 2010 a economia flua outra vez. Tomara. Isso se houver restabelecimento da confiança e do crédito e avanços no reordenamento político e financeiro do mundo. Se, entretanto, houver fracasso, o protecionismo e o nacionalismo bélicos podem voltar à cena. Espero, por isso, que a reunião do G-20 não se resuma a uma oportunidade fotográfica. Fernando Henrique Cardoso, sociólogo, foi presidente da República