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Opinião|Manaus e a privatização de prisões

Fracasso do Estado não justifica a apropriação de serviços prisionais por empresas privadas

Atualização:

O aluvião de argumentos desencontrados, insensatos e tecnicamente imprecisos das autoridades governamentais sobre a gestão das mais degradadas unidades do sistema prisional, especialmente as administradas por meio de contratos de parceria público-privada, é o desdobramento trágico de um debate marcado pela demagogia e pelo oportunismo sobre privatização de estabelecimentos penais. Esse debate começou no início da década de 1990, quando eram intensas as discussões sobre os limites da atuação do Estado na vida socioeconômica e se tornou moda nos meios acadêmicos a defesa de toda e qualquer estratégia de transferência de atribuições do poder público à iniciativa privada.

Tomando carona nesse debate, empresas particulares de vigilância e segurança que prestavam serviços a instituições financeiras e concessionárias privadas de prisões nos Estados Unidos invocaram o princípio da economicidade e passaram a defender a adoção de “técnicas empresariais” na gestão do sistema prisional, oferecendo-se para assumir essa responsabilidade, desde que o Estado as remunerasse com um valor fixo por preso por elas tutelado. Além de enfatizar o binômio custo/eficácia, essas empresas alegaram que, por trabalharem com “pessoas em linha de risco”, tinham “sensibilidade” para desenvolver “serviços de regeneração”.

Lembro-me do material de divulgação de uma dessas empresas, que analisei em artigo publicado na época pela revista do Senado (ano 29, n.º 116): “O empresariado poderá participar, com bônus, de iniciativa particular que possa levar o preso a redescobrir os valores de sua vida e do próximo (...). Ao saírem da prisão, onde aprofundam seus sentimentos mais baixos, os presos acabam comendo o pão pertencente a brasileiros trabalhadores”, dizia o material. Eles também afirmavam que, ao converter prisões em “escolas de civismo e consciência religiosa”, a iniciativa privada exerceria a “missão altruísta e benemérita” de promover a “transformação de massas sem aptidão em profissionais qualificados”.

Duas décadas e meia depois, após a tragédia em Manaus e as declarações de dirigentes federais de que haveria uma zona cinzenta entre as responsabilidades dos agentes públicos e da iniciativa privada em prisões terceirizadas, argumentos como esses causam repulsa. Também causam indignação e surpresa, pois quer os autores daquele material de divulgação, quer as autoridades federais atuais, ao aceitarem como natural o tratamento de homens como mercadorias, esqueceram-se dos pressupostos fundamentais da criação do Estado Democrático de Direito, forjados pelas Revoluções Inglesa, Americana e Francesa. Weber, no campo da sociologia jurídica, e Tocqueville, no plano da filosofia política, mostraram como as instituições de direito do Estado moderno adquiriram autonomia formal ao preço da racionalidade material comum à ordem aristocrática do ancien régime. O preço dessa autonomia foi a valorização da forma em detrimento do conteúdo da ordem legal.

Desde o advento do liberalismo político, segurança e justiça se inserem entre as funções precípuas do setor público. Apesar de nossas prisões terem sido sucateadas por inconsequência dos dirigentes, o fracasso do Estado no cumprimento de seus papéis básicos não justifica a apropriação de serviços prisionais por empresas privadas.

Privatização das prisões envolve homens – entes morais – e seus respectivos direitos. Toda condenação acarreta a perda da maioria desses direitos, é certo, mas o Estado que julga e encarcera, em nome da ordem pública, assume obrigações legais e éticas em relação aos presos. Na democracia, o que se discute são os limites e os graus toleráveis de privação de direitos dos condenados e encarcerados por decisão judicial. Além disso, se o monopólio do exercício legítimo da violência física é o traço distintivo do Estado moderno, a abdicação – ainda que parcial – desse monopólio, sob a forma de gestão empresarial de homens desprovidos da maioria de seus direitos gera uma situação de insegurança expressa por uma dualidade entre o poder público e os poderes privados. Na medida em que concessionárias de prisões precisam de disciplina – portanto, do recurso à força física – para exercer suas atividades, como impedi-las de estabelecer formas de sanções alternativas e autônomas das previstas pela legislação penal?

Esse dualismo de poderes pode significar, por um lado, a rejeição da própria ideia de cidadania e, por outro, a negação do caráter público do Estado. Entre outras razões, porque, como se viu em Manaus, onde o Estado delegou competências a terceiros, mas não os controlou, esse dualismo abre caminho para a substituição da ordem legal formalmente válida para todos por ordens paralelas constituídas ad hoc e geridas substantivamente por grupos empresariais e até facções criminosas que encaram a implementação de ordens judiciais apenas como negócio.

Invocada nos anos 90 como argumento de autoridade pelos defensores da privatização das prisões, a experiência americana foi um fracasso em matéria de redução da reincidência criminal, incorporação de egressos das prisões ao mercado de trabalho e redução de custos na gestão de estabelecimentos penais. Pesquisas mostraram que as prisões públicas apresentaram melhores resultados do que as privadas em matéria de ressocialização de presos, e que muitas prisões privatizadas não tiveram o lucro esperado, o que levou os concessionários a reivindicar subsídios e complementações de receitas, desmoralizando o argumento da economicidade. Se a experiência americana deixou claro que a privatização do sistema prisional era mais mito do que business, a tragédia em Manaus explicitou que a separação entre a aplicação das leis, por uma Justiça soberana e independente, e o controle de prisões por empresas privadas de segurança configura um dramático entrave para a legitimação de um Estado de Direito digno do nome.

*Professor titular da Faculdade de Direito da USP e professor da Fundação Getúlio Vargas (GVLAW)