Imagem ex-librisOpinião do Estadão

Massas populares e democracia

Exclusivo para assinantes
Por Gilberto Dupas
3 min de leitura

Preocupado com a Europa dos anos 1920, Ortega y Gasset considerou o acesso das massas populares ao poder o fato mais importante da vida pública daquela época. Como achava que "massas, por definição, não devem nem podem dirigir sua própria existência, e muito menos reger a sociedade", vaticinava a "crise mais grave que possa ser enfrentada por povos, nações ou culturas", chamando-a de "rebelião das massas". Descrevia o povo lotando teatros e espaços públicos e, num lamento elitista, reclamava que tomavam "justamente os melhores lugares, criação refinada da cultura humana, anteriormente reservada a grupos menores, precisamente as minorias". Para ele, assistia-se ao triunfo de uma hiperdemocracia na qual a massa, havendo percebido que os políticos entendiam de questões políticas menos do que ela, descobrira "o direito de impor e dar força de lei aos seus problemas do dia-a-dia", afirmando seus gostos e aspirações. Ortega y Gasset tinha razões e preocupações típicas do seu tempo, mas que guardam certas afinidades com fenômenos presentes. No Brasil atual, bastou uma pequena recuperação de renda do estrato inferior e maior alongamento dos financiamentos para que segmentos das massas lotassem lojas e até aeroportos. Hoje os movimentos sociais estão no campo, nas praças e nos palácios da América Latina, pressionando governantes - que eles ajudaram a eleger - a cumprirem promessas de campanha. Nas últimas duas décadas do século passado, as promessas de ascensão social dos excluídos pela liberalização dos mercados e pela privatização haviam fracassado. Pior, 100 milhões de novos pobres foram adicionados aos 136 milhões que existiam na região em 1980. Já que a economia não deu conta, coube então à política incorporar os excluídos por meio de novas lideranças populares ou neopopulistas que prometeram reduzir a pobreza e a exclusão. Vivesse hoje, Ortega y Gasset teria razões de sobra para suas perplexidades. Em recente seminário convocado pela direção da Cepal, em Santiago do Chile, debatemos como poderá a democracia de agora cumprir sua missão maior de garantir a cidadania a amplos segmentos de latino-americanos. Para Guillermo O?Donnell, democracia supõe seres humanos portadores de dignidade e possuidores de direitos. Por isso, desenvolvimento econômico só é democrático quando produz sociedades progressivamente mais eqüitativas e respeitadoras dessa dignidade. Por outro lado, não há desenvolvimento sem um Estado que dê sustentação à democracia e a impulsione em direção a maior eqüidade. Ele lembra que as democracias da região são sustentadas por Estados apenas parcialmente democratizados que promovem cidadanias de baixa intensidade, convivendo com ampla pobreza e desigualdade. Por isso mesmo, esses cidadãos-agentes da democracia - até porque elegem seus representantes - esperam ser beneficiários das políticas públicas que atenuem sua exclusão e resgatem sua dignidade. Espaço crucial de poder, tendo como participantes de pleno direito classes e setores antes excluídos, o Estado enriquece-se quando representa o conjunto amplo da cidadania. Para O?Donnell, há quatro condições básicas para que ele possa dar conta de sua missão de promover democracia e desenvolvimento: eficácia das suas burocracias, efetividade do sistema legal, credibilidade como guardião e realizador do bem público da nação e competência para filtrar tensões externas. Aumentar a eficácia do Estado como burocracia significa prestar um bom serviço civil, regido por critérios universalistas. O que implica salários dignos para os funcionários públicos, carreiras avaliadas por critérios objetivos, oportunidades de capacitação periódica, além de boa proteção contra corrupção, clientelismo e nepotismo. Isso é difícil, custa dinheiro e exige longo prazo, palavra proibida para muitos dirigentes políticos. Aumentar a efetividade da legalidade estatal significa estender homogeneamente os direitos civis básicos, sem descuidar da expansão de direitos sociais. Ou seja, ser capaz de elevação progressiva dos pisos mínimos de bem-estar e de desenvolvimento humano que respeite direitos individuais e proteja contra violência. O que exige tratamento respeitoso, inviolabilidade do domicílio, acesso eqüitativo à Justiça e não-discriminação de qualquer classe social. Aumentar a credibilidade do Estado e do governo como agentes gerais do bem público significa boas políticas, bons exemplos de probidade republicana e avanço progressivo na justiça e na coesão social. Finalmente, é necessário a esse Estado saber filtrar adequadamente as diversas dimensões da globalização, reduzindo seus efeitos perversos. E ter claro que globalização econômica nada tem que ver com a diminuição do poder do Estado. Até porque a natureza das demandas a que deve responder exige que ele gaste mais e melhor. O?Donnell acha que caminhar nessa direção é uma dura tarefa numa sociedade de desiguais, já que as classes dominantes podem tentar exercer um forte poder de veto. Nossos Estados latino-americanos, no entanto, têm tido baixo desempenho nessas quatro tarefas básicas, permitindo zonas extensas de anomia em que outros atores - crime organizado, máfias, terceiro setor contaminado por interesses privados - assumem parte do seu papel e enfraquecem as condições para a proliferação dos valores e bens públicos. Para complicar ainda mais, a classe política dá contínuos pretextos para deslegitimar-se junto à sociedade. As massas continuarão a ocupar os espaços públicos cobrando promessas e exigindo soluções. E é a democracia que vai ter de dar conta de garantir-lhes realizações, mais que ilusões. Não será fácil, mas não há caminho melhor.