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Menos ''arrojo''

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Por Sergio Fausto
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Mahmoud Ahmadinejad vem aí. Chega dia 6, a convite do governo brasileiro, transmitido ao governo iraniano pelo chanceler Celso Amorim quando lá esteve meses atrás. Como todos sabem e o governo brasileiro não ignora, o presidente do Irã não é flor que se cheire. Não perde ocasião para pregar o ódio aos judeus, minimizar ou negar o Holocausto e advogar a supressão de Israel da face da Terra. Foi o que fez, mais uma vez, na recente conferência da ONU sobre o racismo, levando os representantes de países europeus a se retirar do recinto. O Brasil também condenou o discurso de Ahmadinejad. A "loucura" do presidente do Irã tem propósito. Ele é duplo: dentro de seu país, pretende fomentar e aproveitar o sentimento anti-Israel (e antiamericano), especialmente forte entre as massas mais pobres e religiosas do Irã; no Grande Oriente Médio, visa a galvanizar o mesmo sentimento entre as massas árabes, sobre as quais o Irã exerce e quer exercer influência, inclusive por meio de organizações como o Hamas e o Hezbollah. Numa e noutra ponta, atua para dificultar a estabilidade política na região, essencial para a estabilidade política global. Para o que, diga-se de passagem, tampouco têm contribuído os recentes governos de Israel. O governo brasileiro justifica a visita do mandatário iraniano com o argumento de que ela ajuda a ampliar as relações comerciais com o Irã. Quanto ao objetivo, nenhum reparo. Quanto ao convite, pelo menos duas questões. Para atingir o objetivo anunciado seria realmente indispensável promover a vinda de Ahmadinejad ao Brasil? E mais, o custo simbólico da visita compensa os supostos ganhos econômicos dela decorrentes? Fica a incômoda impressão de que, na atual política externa, têm pouco peso os princípios da defesa dos direitos humanos e do repúdio à pregação do ódio racial, étnico e/ou religioso, em contradição com o que diz a nossa Constituição e estabelecem compromissos internacionais dos quais o Brasil é signatário. A visita de Ahmadinejad não é episódio isolado. Ela é representativa do "arrojo" com que a política externa brasileira se tem lançado na busca de novos espaços econômicos e políticos para o Brasil. Ninguém há de discordar desse objetivo maior, tampouco do diagnóstico que lhe dá sustentação. De fato, as transformações em curso no sistema internacional, com o relativo declínio dos Estados Unidos e a emergência de novos polos de poder, abrem perspectivas novas e positivas para que conquistemos melhores condições internacionais para o nosso desenvolvimento. O excesso de "arrojo", porém, tem nos acarretado custos desnecessários e contraproducentes à realizado do próprio objetivo visado. Tome-se o exemplo da atropelada admissão da Venezuela como membro pleno do Mercosul, status que lhe foi conferido mesmo antes de que tenha cumprido os requisitos legais exigidos para o ingresso no bloco. Está o Senado agora diante de pressões para ratificar o protocolo de admissão da Venezuela no Mercosul, apenar das resistências de Caracas, até aqui, para cumprir a sua parte. Como se não bastasse, é flagrante e crescente o desrespeito da Venezuela à cláusula democrática, que também faz parte do acervo normativo do bloco, como bem observou o ex-chanceler Celso Lafer em artigo neste espaço. Sim, a integração da Venezuela ao Mercosul faz todo o sentido econômico e político no médio e longo prazos. Atende aos objetivos de fortalecer a economia brasileira pela integração regional e reforçar o papel de agregação e moderação do Brasil na América do Sul, o que contribui para a nossa projeção global. Do jeito que está posta, porém, se aprovada pelo Senado, não atenderá aos interesses brasileiros. Representará nova desmoralização do já pouco crível Mercosul, pela falta de observância das regras de admissão. Limitará ainda mais as margens de manobra do Brasil para ampliar seus acordos de livre comércio, atado que está ao poder de veto de seus parceiros no bloco. Como se não bastasse, dará palco a Hugo Chávez para importar tensões globais para a região (flertes e acordos com Irã e Rússia nas áreas de armamentos e energia nuclear) e provocar o "Império". Em seu "arrojo", a política externa às vezes nos enreda em situações constrangedoras, para dizer o mínimo. É o que se verificou no recente episódio em que o Tribunal Penal Internacional ordenou a prisão do presidente do Sudão como responsável pelo genocídio na região de Darfur. Diante da decisão e da controvérsia subsequente, o Brasil preferiu o silêncio, para não desagradar aos países da União Africana e da Liga Árabe, que atribuíram a decisão ao "colonialismo ocidental", embora a muitos líderes desses países possa repugnar o que está acontecendo em Darfur. Ao seu estilo, Chávez fez coro com o protesto de árabes e africanos e não hesitou em convidar Omar Hassan al-Bashir a visitar Caracas. Em todo o episódio não se ouviu do governo brasileiro uma palavra sequer em defesa do tribunal, instituição que o Brasil considera uma conquista civilizatória e de cujo estatuto somos signatários. Resta perguntar o que explicaria os excessos da política externa. Desde logo, certa desproporção das ambições brasileiras, a qual nos leva a dar passos maiores que as pernas, em busca de novos espaços de poder, em geral, e de um assento no Conselho de Segurança da ONU, em particular. Além disso, há ideologia: um antiamericanismo difuso que não raro cega membros do governo atual para os valores e práticas que deveriam caracterizar a identidade externa do Brasil. Deveriam porque traduzem aquilo que queremos ser. Menor "arrojo" tático e maior zelo em relação a valores que nos são caros. É do que precisamos para aproveitar mais e melhor as oportunidades que hoje se abrem para os interesses e a imagem do Brasil no mundo. Sérgio Fausto, coordenador de Estudos e Debates do iFHC, é membro do Grupo de Acompanhamento da Conjuntura Internacional (Gacint) da USP E-mail: sfausto40@hotmail.com