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Mentalidade mata-esfola

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Por Luiz Weis
4 min de leitura

E daí que o delegado Protógenes Queiroz usou passagens da cota de deputados para participar de um evento partidário? E daí que ele usou uma equipe da TV Globo para filmar uma tentativa de suborno que beneficiaria o banqueiro Daniel Dantas? O antigo chefe da Operação Satiagraha - afastado da Polícia Federal (PF) enquanto durar o processo contra ele por ter feito propaganda para o candidato do PT a prefeito de Poços de Caldas, no ano passado - evidentemente exagera ao dizer que "a população brasileira" não compartilha a "perseguição sistemática e desenfreada" de que seria alvo. Mas até o mais distraído dos frequentadores da blogosfera notará a quantidade de ataques furiosos a quem quer que ouse criticar o policial, que já estava sob investigação da PF por seus procedimentos na condução da Satiagraha (ele foi indiciado por quebra do sigilo funcional quando deu a agentes da Abin acesso a grampos e outros materiais protegidos pela Lei de Interceptações). Essas reações vêm da mentalidade mata-esfola que existe em qualquer tempo e lugar, e para a qual o menor pretexto serve - que dirá dos grandes que dão e sobram no Brasil. Basta, no caso, a percepção da fraude, da corrupção e da impunidade, que mantêm abertas as veias deste país, onde quem pode pode, quem não pode se sacode. Tais atitudes se guiam pelo princípio de que o mal, empregado para o bem, redime os que a ele recorrem. Na matéria do Estado do último domingo que revelou os voos de Protógenes nas asas do PSOL, a deputada Luciana Genro, que lhe repassou passagens de sua cota para que pudesse participar em Porto Alegre de um ato contra a corrupção, ao lado da Pasionaria da legenda, a ex-senadora e candidata presidencial Heloísa Helena, deu um exemplo acabado desse relativismo moral. "É um despropósito", opinou Luciana, "que se use (a cota de passagens) para famílias passarem férias no exterior e não possamos usá-las para fazer política." Poder, pode - ainda mais agora que a Câmara e o Senado legitimaram a farra, mas isso é o de menos. De menos também, para o que interessa a este texto, é saber se o ilustre passageiro teria infringido mais uma vez as normas da sua repartição policial. O ponto é a difusão da ideia de que "o sistema" é impermeável ao que seria a verdadeira Justiça - a que trataria um Daniel Dantas, ou uma Eliana Tranchesi, como qualquer outro presumível transgressor, fossem quais fossem os seus amigos e fosse qual fosse a posição deles no condomínio do poder. Diante disso, de duas, uma: ou se entregam os pontos, ou se vai à luta sujando as mãos para deixar o País mais limpo. O resto depois se vê. Ignora-se o espaço que o emprego desses materiais de limpeza abre para o arbítrio e a desproteção dos direitos de todos perante a autoridade. Como sempre, a premissa oportunista de que os fins justificam os meios é ainda um formidável anestésico. A julgar pelo que circulou na internet nos últimos dias, no mínimo não teve nada de mais a decisão de Protógenes de envolver a imprensa - na pessoa de um cinegrafista da Globo - na operação policial montada para flagrar um delito que aliviaria a barra de Daniel Dantas. Na quinta-feira passada, o jornalista Rui Nogueira revelou nestas páginas trechos do relatório de 88 páginas do corregedor da Polícia Federal, Amaro Vieira, responsável pelas investigações sobre a conduta de Protógenes, que tratam das relações entre ele e a emissora. Vieira descobriu que o delegado fez mais do que lhe dar, pessoalmente, acesso exclusivo às prisões de Dantas, do investidor Naji Nahas e do ex-prefeito Celso Pitta, em julho do ano passado. Segundo o corregedor, Protógenes "se encarregou de providenciar uma equipe para realizar a filmagem do encontro", numa churrascaria paulistana, em que os empresários Hugo Chicaroni e Humberto Brás iriam pagar R$ 50 mil ao delegado Victor Hugo Alves Ferreira para que ajudasse a amolecer as investigações sobre o dono do Opportunity. Um agente federal funcionou como diretor de cena. "Além de recepcionar os jornalistas", apurou Vieira, "indicou-lhe as posições que deveriam ocupar para capturar melhores ângulos." Depois, as gravações foram-lhe entregues e, após editadas "de modo a suprimir evidência da participação dos jornalistas", teriam sido utilizadas na instrução processual. A íntegra da filmagem foi achada em um pen drive de Protógenes. As imagens foram ao ar como "um trabalho policial". Com o risco de aborrecer o eventual leitor que já as conheça, reproduzem-se aqui as passagens da reportagem para ressaltar a enormidade da complacência, quando não do endosso robusto de uma parcela do público às ações do delegado. Insensíveis a tudo mais na sua torcida pelo solitário guerreiro contra o dragão da maldade, a tais pessoas pouco se dá o que significa o arranjo descrito pelo corregedor da PF, que em países com os quais o Brasil aspira a ser comparado seria um escândalo nacional. Novamente, o que choca é menos o comportamento dos participantes da parceria do que a indiferença de muitos a um abuso que deveria ser evidente para todos os que se preocupam com o desempenho das instituições - e a imprensa é uma delas - em que se escoram a democracia e o Estado de Direito. Só que a frustração com fracasso da ordem política em coibir os crimes de colarinho-branco e a esbórnia continuada dos políticos com o dinheiro público escava um profundo descompromisso com as regras do jogo e alimenta a teoria conspiratória da manipulação dos Poderes pelos "loiros de olhos azuis", como diria Lula. Ela é tanto mais perigosa por ter um pé fincado na realidade. A frustração por não ver um bacana ser arrastado ao cadafalso alimenta o culto ao justiceiro no lugar do juiz, porque aquele faz o que precisa ser feito - do jeito que der. Nessa caricatura do devido processo legal, o mais ou é perfumaria ou cumplicidade com os culpados. É de lascar. Luiz Weis é jornalista