
24 de fevereiro de 2011 | 00h00
A trajetória esportiva desse atleta de talento perturbador, chamado de "Fenômeno", é a história de superações físicas inacreditáveis. Ele sofreu fraturas e lesões gravíssimas e, contrariando previsões abalizadas, voltou a brilhar nos estádios, para alegria dos torcedores e até mesmo de espectadores exóticos, que não compreendem a aura dessa modalidade desportiva baseada em chutes e cabeçadas. Uma cena ficou na lembrança de todo mundo: a expressão de dor lancinante de Ronaldo, sentado à frente da grande área, com as mãos sobre o joelho, talvez tenha sido uma das imagens mais marcantes na memória recente dos apreciadores do futebol e também dos curiosos ocasionais. Foi um momento de silêncio sólido, espontâneo, de imensa apreensão. O craque, como que abatido em pleno voo, parecia condenado. Nos meses seguintes, no entanto, ele deu a volta por cima, como se diz - ou, para lembrarmos sua frase mais recente, venceu seus ossos e seus músculos lesionados.
Antes, nos duelos entre Ronaldo e o corpo de Ronaldo, o primeiro alcançava a vitória. Claro que respeitava o adversário - a saber, seu próprio corpo -, mas dava conta de derrotá-lo. Agora, no entanto, quem sofre a derrota é ele, Ronaldo. O que isso quer dizer, exatamente?
Podemos começar pelos chavões: querer é poder, por exemplo. Eis um bom chavão. "Yes, we can", dizia a campanha de Obama. "Keep walking", reza o rótulo do uísque. A ideia de "vencer" os limites corporais é uma crença endêmica da nossa era. Os melodramas de superação fazem sucesso na televisão e no cinema, assim como na publicidade. Há poucos anos, uma marca de cigarro tinha um slogan bem sugestivo: "No limits." Ou seja: fume, não aceite restrições, entregue-se ao que você entende como desejo, aspire seu prazer, derrube os obstáculos morais e físicos.
Neste plano, notoriamente superficial e acachapante, o discurso publicitário se assemelha às falas dos zagueiros no intervalo do jogo: a gente vai vencer e ser feliz pra chuchu com a taça na mão. Para ser feliz, portanto, é preciso competir, vencer e pôr a mão na coisa. Competir para ser feliz é bater-se contra o adversário e contra os limites do próprio corpo. Ser feliz, enfim, segundo esse sistema de crenças, é fazer com que o desejo triunfe sobre a matéria corporal e sobre todos os outros humanos que são contra o que desejamos. Tanto é assim que esses lugares comuns, que dão base para as novelas de TV e para campanhas de publicidade, orientam a biografia de seres humanos de carne e osso, em luta permanente contra sua carne e seus ossos.
Então é isso? Não, não é só isso. Há uma problema nessa lógica, um problema nada corriqueiro. Se sairmos do plano superficial e acachapante, veremos que o desejo - já que falamos dele - não é bem um sinônimo de força de vontade. É, aliás, o seu oposto. O desejo não brota da alma para disciplinar o corpo. Ao contrário, ele se enraíza nas pulsões do organismo, cujas secreções são todas físicas, materiais. O desejo nasce do corpo, compete contra o corpo e, se por acaso entra em rota de desgoverno, mata o corpo. Não fosse assim, ninguém morreria de vício. Daí, quando alguém diz que perdeu o combate para o próprio corpo, é difícil saber se perdeu por não ter sabido impor ao corpo a sua vontade - ou se perdeu por ter cedido em demasia aos desejos que brotaram do corpo (e aqui, nesse plano, é possível diferenciar vontade de desejo).
Podemos perder para o corpo quando ele não nos obedece mais - ou seja, não obedece à nossa vontade, àquela deliberação racional que adotamos e que queremos fazer valer com persistência e determinação. Mas também podemos perder para o corpo quando cedemos a todos os caprichos que ele nos impõe, quando a nossa razão, se é que ela existe, perde autonomia para a nossa carne (que não é fraca, de modo nenhum; é fortíssima).
Isso posto, onde é mesmo que está a derrota anunciada por Ronaldo? Estará ela no esmorecimento da disciplina ou no esmorecimento do corpo? Se estiver no esmorecimento da disciplina, sua derrota não terá sido para o joelho ou para a tireoide, mas para os prazeres que o corpo lhe cobrou, prazeres que minaram sua força de vontade. Se estiver no esmorecimento do corpo, sua derrota terá sido a fadiga do material: não dá mais e ponto. O mais provável - e o mais fascinante, neste caso - é que as duas vias de explicação estão certas.
Por uma via ou por outra, a civilização em que existimos tem este traço particular, o de fazer com que o sujeito olhe para o seu próprio corpo como se ele fosse um objeto externo, administrável. O executivo, olhando para o gráfico de colesterol de seus exames de sangue periódicos, crê que pode gerenciar seu corpo como administra o caixa de sua empresa. A mulher contrata o cirurgião para esculpir seu colo a golpes de bisturi. Viver é combater o corpo, inutilmente. No final, é ele quem vencerá, mesmo morto. Quando tudo acabar, o que carregarão de nós não será outra coisa senão o corpo vencedor.
JORNALISTA, É PROFESSOR DA ECA-USP E DA ESPM
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