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Opinião|Mussolini, quem diria, tinha mais educação

Bolsonaro: ou o MST e o MTST se submetem à lei ou “vão fazer companhia ao cachaceiro”...

Atualização:

(Se você acredita sinceramente que defende a liberdade, este artigo foi escrito para os seus olhos.)

Em política, palavras são atos. Falar é fazer. A liderança política age na linguagem e, pela palavra, agrega ou divide seus pares e seus seguidores. Disso sabemos, certo?

Talvez não. Apoiadores de Bolsonaro (refiro-me àqueles minimamente ilustrados) desprezam as palavras dele. Acham que seus pronunciamentos infamantes não têm importância. Acham que poderão controlá-lo depois de eleito, que farão dele um fantoche a serviço das causas liberais. Estão enganados.

Ainda que seja tarde, olhemos, uma vez mais, para as palavras do deputado. No domingo, num discurso transmitido por celular em que ele se dirigiu, à distância, a manifestantes de rua, ele disparou novas saraivadas de descalabros. Alguns repetidos, alguns novos. O tom não é o de um candidato a presidente de uma República democrática, mas o de alguém que se lança como futuro senhor de todos os poderes, com atribuições plenas de fazer leis, de aplicá-las e depois executar as penas, de banir quem quiser e de prender quem bem entender.

Exemplo: “Esses marginais vermelhos serão banidos de nossa Pátria”. Outro exemplo: “Essa Pátria é nossa. Não é dessa gangue que tem a bandeira vermelha e tem a cabeça lavada”.

Em outra passagem, roga sua condenação prévia contra o que vem chamando grosseiramente de “ativismo”: “Bandido do MST, bandido do MTST, as ações de vocês serão tipificadas como terrorismo! Vocês não levarão mais o terror ao campo ou à cidade. Ou vocês se enquadram e se submetem às leis, ou vão fazer companhia ao cachaceiro lá em Curitiba!”.

Em transe de onipotência, anuncia que seu adversário nesta eleição também será preso. Dirigindo-se a Lula, que “vai apodrecer na cadeia”, assegura: “Aguarde, o Haddad vai chegar aí também. Mas não será para visitá-lo, não. Será para ficar alguns anos ao seu lado. Já que vocês se amam tanto, vocês vão apodrecer na cadeia”.

Com que autoridade ele fala isso? Que mandato imagina que receberá das urnas? O de xerife nacional? O mais chocante, porém, não é isso. O mais chocante é que seus apoiadores - alguns cultos, eruditos - nem se incomodam. Fingem que tais pronunciamentos não terão consequências para a ordem democrática ou para o tratamento respeitoso entre os compatriotas. Fingem que o presidente da República não tem mais o dever da urbanidade. O que se passa?

Mas a declaração mais escabrosa de Jair Bolsonaro no domingo não foi nenhuma dessas. O pior insulto não teve como alvo a integridade física de seus desafetos, mas a liberdade de imprensa. E outra vez ficou o dito pelo não dito. Ninguém protestou.

No momento em que conclamava seus cabos eleitorais a seguirem “mobilizados” até o dia 28, ele descreveu as condições ideais do que entende por um clima de eleições democráticas: “Sem mentiras, sem fake news, sem Folha de S.Paulo!”. E prosseguiu: “Nós ganharemos essa guerra. Queremos a imprensa livre, mas com responsabilidade. A Folha de S.Paulo é o (sic) maior fake news do Brasil. Vocês não terão mais verba publicitária do governo. Imprensa livre: parabéns! Imprensa vendida: meus pêsames!”

Sim, você leu corretamente. Ele celebra a “imprensa livre”, desde que essa imprensa siga o que ele, Bolsonaro, entende como “responsabilidade”. Pelo que lemos com absoluta clareza em seus gritos bélicos - bélicos, sim, pois o candidato se refere à eleição como uma “guerra” -, a “imprensa livre” terá direito de existir no governo dele, mas deve ser também uma imprensa que ele considere “responsável”. A Folha de S.Paulo, bem, essa aí ele parece considerar “imprensa vendida”. Por quê? Ele não explica. Talvez porque a Folha tenha publicado reportagens sobre as declarações de sua ex-mulher, que, no passado, se disse ameaçada por ele, e sobre mecanismos de difusão de notícias fraudulentas no WhatsApp que o teriam favorecido. De todo modo, o orador não esclarece nada.

Em seu telecomício anti-imprensa, o candidato extrapolou. Ameaçou a Folha com o corte futuro de “verba publicitária do governo”. Nesse ponto, suas inclinações pouco democráticas se escancaram. A partir de uma distorção da nossa República - a profusão de dinheiro público no mercado anunciante -, promete produzir uma segunda distorção, muito mais deletéria.

Para entender. Você sabe que os recursos da União, dos Estados, dos municípios e das empresas estatais, todos somados, totalizam bilhões de reais. A conta exata é impossível, pois os dados não são abertos. Mesmo assim, é possível afirmar que o maior anunciante do mercado publicitário no Brasil é o dinheiro público. Trata-se de uma enorme distorção. Diante disso, em vez de prometer mudar o quadro, Bolsonaro promete tirar proveito da distorção para punir os jornais que o criticam. E faz isso abertamente, sem a menor cerimônia. De queixo empinado, atropela o dever que teria, como administrador público, de agir conforme o princípio constitucional da impessoalidade. Ignora que ao servidor público não é facultada discricionariedade de comprar espaços publicitários conforme suas preferências partidárias. Ele não está nem aí. Seria uma ilegalidade, mas ele não liga.

Nem Benito Mussolini se atreveria a tanto. No dia 27 de janeiro de 1924, já primeiro-ministro, na abertura do Congresso de Imprensa Fascista e Philofascista, ele declarou que “a liberdade de imprensa não é somente um direito, mas um dever” (para quem duvida há uma nota a respeito na primeira página do jornal A Noite de 28 de janeiro de 1924). Nada de errado com a frase. O primeiro dever da imprensa é mesmo ser livre.

Mussolini nunca foi um liberal, mas, ao menos durante um tempo, segurava o facho. Tinha alguma educação. Podia até pensar que o primeiro dever da imprensa era elogiá-lo, mas maneirava no discurso. Sabia que a liberdade tinha defensores atentos. E hoje?

* JORNALISTA, É PROFESSOR DA ECA-USP