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Nacional por adição

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Por Carlos Fausto
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Em entrevista a este jornal, o deputado Aldo Rebelo, que apresentou projeto de lei alterando a demarcação de terras indígenas, faz duras críticas ao modelo demarcatório vigente, à Fundação Nacional do Índio (Funai), a ONGs e antropólogos. Baseado em 20 anos de trabalho com populações indígenas, sinto-me instado a respondê-las para melhor esclarecer a opinião pública. A demarcação de terras indígenas (TIs) implica a retirada de um estoque de terras do regime de propriedade privada, criando um outro modo de apropriação e uso fundiários. A razão para que os agentes econômicos combatam as demarcações é óbvia: retirar terras do mercado implica diminuir as possibilidades de lucro. Mas por que um deputado que não é um entusiasta da propriedade privada compartilha essa posição? Creio que por ter uma visão negativa da diversidade e defender uma concepção homogeneizante de nação. A democracia funda-se no respeito à diversidade, seja ela social, cultural, étnica ou de opinião. Regimes autoritários, de direita ou de esquerda, têm horror à diferença, tratando as minorias de modo desrespeitoso e, por vezes, brutal. Mas respeito à diferença significa segregar ou dividir, como faz crer o deputado? De modo algum. Trata-se de um conceito central ao Estado de Direito. Significa que, em situações de assimetria de poder, o Estado deve dar condições aos grupos sociais minoritários para que possam relacionar-se de modo mais simétrico com os setores hegemônicos. No caso indígena, essa noção está expressa no artigo 231 da Constituição federal. A norma constitucional distancia-se tanto do imobilismo romântico como do assimilacionismo desenvolvimentista. O respeito à diversidade não implica que os índios devam permanecer congelados no tempo, mas que ao Estado cabe prover os meios para que possam mudar em seus próprios termos, e não nos termos determinados pelo padrão sociocultural dominante. Daí a importância de demarcar devidamente as terras ocupadas pelos índios, sobre as quais eles possuem direitos originários. Não seriam as TIs grandes demais? Não estariam os antropólogos traindo a tradição dos irmãos Vilas Boas e de Darcy Ribeiro, como afirma o deputado? Ao contrário, estão sendo fiéis a ela. A tradição antiassimilacionista do Estado brasileiro inaugura-se em 1952, quando a comissão composta pelo brigadeiro Raimundo Aboim, Heloísa Alberto Torres, Orlando Vilas Boas e Darcy Ribeiro encaminha o anteprojeto de lei para criação do Parque do Xingu com 20 milhões de hectares (12 vezes maior que Raposa-Serra do Sol). Infelizmente, o parque foi criado em 1961 com um décimo dessa área, em razão da venda desenfreada de terras indígenas por empresas colonizadoras, um escândalo que foi objeto de CPI em 1955. O atual mecanismo demarcatório não é antidemocrático. O processo inicia-se com um laudo antropológico, levando anos até alcançar seu estágio final. Como em todo ato administrativo, prevê-se o contraditório. As partes - sejam elas índios, fazendeiros, colonos - podem se pronunciar no bojo do processo, além de poderem recorrer à via judicial. O fato novo, hoje, é que o Supremo Tribunal Federal (STF), ao ratificar a demarcação de Raposa-Serra do Sol, definiu um entendimento preciso do preceito constitucional. Por isso interesses contrariados querem mudar as regras do jogo. Atacar o STF seria má estratégia, melhor encontrar alvos mais frágeis: Funai, ONGs, antropólogos. ONG não é senão uma sigla para designar uma forma de organização da sociedade civil. Há ONGs e ONGs: a generalização visa apenas a gerar um bode expiatório. A Funai é talvez um órgão pouco eficiente, dotado de um orçamento insuficiente e carente de pessoal qualificado. Mas a quem interessa que ela não funcione bem? Aos índios? Os antropólogos buscam dar sua contribuição à construção do Estado de Direito no Brasil. Boa parte deles, além de realizar pesquisas, atua em projetos de formação e capacitação de povos indígenas. Desconheço colegas que pretendam que os índios permaneçam em "estágio de caça e coleta", como sugere o deputado. O que os antropólogos recusam, isso sim, é reproduzir uma relação colonial com os índios, no interior da própria sociedade brasileira. Já os índios se recusam a aceitar o destino que se traçou para eles: o de se tornarem trabalhadores no ponto mais baixo da cadeia produtiva. O Serviço de Proteção aos Índios (SPI) nasceu em 1910 com a sigla SPILTN, as três últimas letras lendo-se como Localização dos Trabalhadores Nacionais. O órgão deu continuidade à política colonial e imperial que visava a "integrar" os índios, ou seja, localizá-los num ponto do território, liberar suas terras para a apropriação privada e fazer deles trabalhadores braçais. Os índios preferem, hoje, ser índios e doutores, artistas, cientistas, advogados, médicos. Para tanto precisam de uma política específica de Estado. Ao Estado cabe abrigar a diversidade, permitindo formas de desenvolvimento sociocultural variadas dentro do quadro normativo do Estado de Direito. É esse o projeto de nação consolidado na Constituição de 1988, cujo espírito foi interpretado pelo STF. Mudar as regras do jogo, trazendo a responsabilidade da demarcação para o Congresso, é uma estratégia para alterar a correlação de forças. A mudança não traz mais transparência ao processo demarcatório, mas sim morosidade, tornando-o mais vulnerável aos interesses particulares. O que nos distancia das posições do deputado são concepções de nação. Não desejamos um "nacional por subtração", mas um "nacional por adição". Queremos uma nação diversa, aberta à alteridade e, ao mesmo tempo, capaz de se afirmar em seus próprios termos. É essa a riqueza do Brasil, é essa a tradição que nos une. Em nome de que querem rejeitá-la? Carlos Fausto, professor do Departamento de Antropologia do Museu Nacional (UFRJ), pesquisador I do CNPq, bolsista Cientista do Nosso Estado da Faperj, é autor, entre outros, de Inimigos Fiéis: História, Guerra e Xamanismo na Amazônia