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Opinião|Narrativas brasileiras

Atualização:

Proliferam as narrativas de que a recessão brasileira de 2015 resultou das incertezas geradas pela Operação Lava Jato, pela queda da confiança e pelo envolvimento de grandes empresas no esquema de corrupção. Segundo essa narrativa, que não deixa de enaltecer a Lava Jato e o legado que haverá de deixar para o País – a melhoria das instituições, a mudança nas relações entre o Estado e o setor privado, a percepção de que o Brasil encerra era nefasta com as prisões inéditas e as revelações sobre a abrangência da nossa economia de esquemas –, tudo melhora quando a confiança voltar. O que temos visto no País é passageiro, percalços que serão superados quando Zumbi chegar.

Zumbi chegou. Não o dos Palmares, senhor das guerras, senhor das demandas. O que aí está é corpo sem alma, catatônico, atônito com as narrativas que tentam atribuir-lhe vontade própria. A economia brasileira, aquela que vaga como morta-viva, não se encaixa na narrativa peculiar que tomou conta do imaginário governista. Há várias formas de comprovar seu estado moribundo, a lista de desmandos é extensa. Contudo consideremos apenas um indicador: a taxa de poupança da economia, aquela que deveria financiar o investimento.

De acordo com o conto da perda de confiança passageira, empresas e famílias, atordoadas pelos impasses políticos e as gravíssimas incertezas que encobriram o País, pararam de investir, de consumir, levando o Brasil à pior recessão das últimas décadas. Conforme tal narrativa desleal, o governo fez tudo o que devia no ano passado: reajustou os preços que ele próprio desalinhou, reforçou as contas públicas que ele próprio destruiu, continuou a prover saúde e educação, as bases fundamentais dos avanços sociais brasileiros. Deixando de lado o estado lastimável da saúde e da educação, a educação que seria financiada pelas glórias do pré-sal, a saúde contaminada pelo vírus zika, a narrativa desleal preconiza que não houve perda de riqueza no País. Famílias e empresas estão apenas em compasso de espera. Se isso fosse verdade, haveria dinheiro sobrando, entesourado no caixa das empresas, dinheiro guardado debaixo do colchão das famílias brasileiras. A taxa de poupança deveria ter-se mantido constante, ainda que não se tenha convertido em investimento.

Não foi assim. A taxa de poupança como proporção do PIB caiu de uma média de 20% em meados de 2011 para míseros 15% no terceiro trimestre de 2015 – são cinco pontos porcentuais do PIB de perda de riqueza para a economia brasileira, ou cerca de R$ 300 bilhões. Vale a pena repetir: o Brasil perdeu R$ 300 bilhões de renda e de riqueza nos últimos quatro anos em função das “medidas contracíclicas” que não surtiram os efeitos desejados, como nos tem dito a comandante-chefe da economia, a presidente Dilma. Tais perdas, de acordo com as previsões mais recentes do FMI, não haverão de ficar restritas ao ano de 2015. O Fundo acaba de divulgar revisões de suas projeções em que prevê uma recessão de 3,5% em 2016, seguida de estagnação em 2017 – o Brasil não crescerá antes de 2018, sustenta o órgão internacional. Dois anos consecutivos de encolhimento dramático da atividade econômica, acompanhados de inflação alta, resultado dos gravíssimos desequilíbrios fiscais que o governo trata como se nada de tão importante fossem. Tanto assim que considera diluir o ajuste para não abalar a economia. Bem como pensa em reativar o crédito público, adotando as mesmas medidas contracíclicas que reconhece não terem funcionado “a contento”. O resultado? O persistente estrangulamento da classe média, sobretudo da alardeada classe C, aquela que já minguou de 56% da população para 54% em apenas 12 meses, arremessando 4 milhões de pessoas de volta à pobreza.

O Brasil real, aquele que nega a narrativa desleal, terá em 2016 pior desempenho do que a Rússia. A Rússia, emparedada pelos severos problemas geopolíticos e pelo drama da queda dos preços do petróleo. O FMI acredita que o PIB da Rússia possa encolher 1% este ano, voltando a crescer em 2017. O Brasil de Dilma não é Rússia ou Índia, China ou África do Sul. O Brasil de Dilma apequena-se ante sua visível incompetência, enquanto outros enfrentam situação externa hostil sobre bases menos desarranjadas do que as do País olímpico, medalha de ouro em criatividade destrutiva e instinto macunaímico de destituição da realidade.

O mundo atravessa momento difícil. A China, em meio às reformas que pretende avançar, cambaleia, assustando os mercados, afetando os preços da matérias-primas, as moedas dos países emergentes, aumentando os riscos para a economia mundial. O petróleo desaba, afetando as finanças e a estabilidade política dos países que dele dependem para manter a higidez financeira. O calvário dos emigrantes da Síria e das demais regiões sob domínio do Estado Islâmico aumenta os riscos de crise geopolítica na Europa, como se os problemas com a Rússia de Putin já não bastassem. A recuperação da economia americana, embora inegável, pode resfolegar diante da valorização do dólar, dos acontecimentos da China, do mercado de trabalho que ainda não ganhou tração suficiente para acalentar cenários de alta sustentada do consumo das famílias.

O governo brasileiro destaca tais riscos de modo a proteger-se caso a narrativa da volta da confiança não emplaque como supõe. O fato inconveniente, no entanto, é que a desaceleração dos países emergentes, sobre a qual hoje tanto se fala, é fundamentalmente a desaceleração da América Latina e de sua principal economia, o Brasil. A despeito de todas as dificuldades enumeradas, a Europa emergente deve crescer cerca de 3% em 2016, a Ásia emergente pode ter expansão de 6,3% este ano, ainda que o cenário seja hostil. Já a América Latina, liderada pelo Brasil, encolherá uns 0,3% em 2016 e não deve crescer mais de 1,5% em 2017.

Ano novo, ministro novo. Ministro novo, problemas velhos. Problemas velhos, narrativas erradas. Conclusão: nada de novo.

* MONICA DE BOLLE É PESQUISADORA DO PETERSON INSTITUTE FOR INTERNATIONAL ECONOMICS E PROFESSORA DA SAIS JOHNS HOPKINS UNIVERSITY

Opinião por MONICA DE BOLLE