
07 de dezembro de 2011 | 03h06
Ninguém, é claro, está imune a ter registrada uma camaradagem explícita com alguém acusado de crime grave, por uma câmera fotográfica. Personalidades públicas, como artistas e candidatos a cargos eletivos, estão sujeitas a ser surpreendidas por conexões incômodas com a publicação de imagens como essas. Acusar uma celebridade de cumplicidade com um criminoso por um flagrante infeliz seria uma irresponsabilidade. Mas merece reflexão a acusação a William de Oliveira, feita pelo delegado Márcio Mendonça, da Delegacia de Roubos e Furtos de Automóveis (Derfa), de ter intermediado a venda de um fuzil AK-74 a Nem. Pode haver contradição mais cruel do que o ex-presidente de uma entidade intitulada União Pró-Melhoramentos e benemérito da campanha do desarmamento ser pilhado armando bandidos, para que estes possam executar cidadãos honestos? Trata-se de uma ironia que transcende a pura amargura, mas, infelizmente, não passa de um respingo de lama.
O vídeo de 18 minutos em mãos da polícia fluminense é mais uma evidência dos vasos de comunicação existentes entre crime e política, grupos armados que violam a lei e figurões republicanos que se engalfinham pelo poder no Estado. Nessa comunicação do "me engana que eu gosto" se utiliza o eufemismo politicamente correto como retórica oficial. Não sei se o distinto leitor já reparou, mas nos noticiários de televisão não se usa mais a palavra favela, com a qual antes se definiam conjuntos de habitação precária em que a miséria cerca nossos centros urbanos. O nome foi dado pelos sobreviventes da Guerra de Canudos que foram morar nos morros do Rio e tem origem na forma como é denominada uma planta do semiárido de origem. Hoje são "comunidades".
A prática de tentar suavizar uma brutalidade pela retórica caridosa se tem tornado corriqueira nesta era da comunicação de massas, em que a linguagem se sobrepõe ao ato e a versão prevalece sobre o fato. Chamar um negro de "afrodescendente" não elimina o preconceito racial, mas o mascara de forma conveniente para uma sociedade de faz de conta, na qual a incapacidade de acabar com conflitos usa a hipocrisia para mascará-los. Mesmo apanhado em flagrante delito, William da Rocinha foi qualificado como "líder comunitário". O eufemismo benevolente torna-o um benfeitor por vocação, ao mesmo tempo que fornece o álibi perfeito a todos os políticos que se aproveitaram de seu prestígio na "comunidade", desde sempre desamparada e desprezada pelo Estado e seus agentes, para angariar votos em campanha e boas imagens populistas para os shows de marketing político ao longo das administrações. Trata-se de uma prática antiga e disseminada. O ex-governador do Rio Leonel Brizola praticamente avalizou a tomada do território das "comunidades carentes" instaladas na periferia da capital fluminense ao declarar que sua polícia não subiria o morro para não constranger o morador dos bairros pobres. O poder real na Rocinha, representado (até a prisão) pelo traficante Nem, e o poder político da República - presidentes e governador no exercício de seus mandatos, o secretário de Segurança que ignora o óbvio e a vereadora tucana que o sustenta com nosso dinheirinho escasso - se curvaram ante o "representante do povo".
Mais irônico é que no dia em que foi noticiada a prisão de William da Rocinha também foi divulgada a de Marcos Valério Fernandes de Souza, o lobista acusado de operar uma prática lesiva ao interesse público inadequadamente apelidada de "mensalão". Como Al Capone, o gângster mais poderoso e violento da Chicago da Lei Seca, caiu nas malhas do fisco, o "careca" (agora com fios incipientes de cabelo no crânio), como ficou conhecido, na definição do delator da fraude, o ex-deputado Roberto Jefferson (PTB-RJ), foi preso sob acusação de ter falsificado matrículas de imóveis em São Desidério (BA) para fraudar processos de execução de dívidas com instituições financeiras e empresas. Com a Operação Terra do Nunca, o Ministério Público e a Polícia Civil da Bahia, cujo governador, Jaques Wagner, é do PT, desmoralizaram por tabela todas as tentativas dos principais réus do processo - entre os quais José Dirceu, ex-chefe da Casa Civil no governo Lula - de negar a existência de um eventual esquema de compra de apoio de parlamentares de legendas menores da base governista em votações no Congresso de interesse do governo.
Na "terra do nunca" o crime sai bem na fita, já que o braço da lei só logra alcançar "bagrinhos" sem força, como William da Rocinha e Marcos Valério.
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