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Opinião|O árbitro de vídeo como instância recursal

Que coisa mais caipira! O futebol, que antes era apenas sem graça, agora ficou mais tristonho

Atualização:

Presumo que o leitor destas páginas, habitualmente dedicadas a assuntos inadiáveis, como inflação, eleição, corrupção e obnubilação, há de ter sido informado de que transcorre na Rússia, por estes dias, um campeonato mundial de futebol. O esporte em tela vem a ser, atualmente, o mais popular no mundo e os frequentadores deste espaço, habitantes deste planeta, sabem perfeitamente em que consiste a sua prática: chutar. Mas, aí, diferentemente do que se dá em outros domínios da vida, chuta-se com destreza. Em certames mundiais, são raros os pernas de pau. Além de chutes, os atletas também dão cabeçadas.

No mais, o futebol não tem atrativos. É pura monotonia. Nunca há novidade em seus cenários. Com sua imutabilidade, desperta paixões furiosas em pessoas comuns, como advogados, garis, políticos e sacerdotes – e fúrias passionais em multidões numerosas. Há notícias de turbas uniformizadas que se enfrentam em batalhas campais em que torcedores de um lado matam torcedores do outro. Assim é a rotina modorrenta e entediante do ludopédio, com seu conservadorismo feroz. Nada de novo sob os holofotes. O futebol é uma longa tragédia sem surpresas, cuja prosa são as entrevistas dadas pelos jogadores e seus treinadores, tecidas de irrelevâncias sobre o vazio. As massas deliciam-se com o vácuo de sentido. As massas são como as crianças de antigamente, que na hora de dormir pediam pra mamãe reler sempre a mesma historinha.

Dado o contexto, não deixa de chamar a atenção que, neste ano de 2018, espocou um dado diferente nisso a que chamam de Copa do Mundo (deveria ser Taça do Mundo, mas parece que nesse caso espanholaram o português). A mudança da temporada é o árbitro de vídeo. Liguei a TV para ver esse negócio. Que coisa mais caipira! A bilionária atração da indústria do entretenimento chamada futebol, que antes era apenas sem graça, agora ficou mais tristonha.

Caso o improvável leitor não se tenha dado conta do que se vem passando na Rússia, passo a uma breve descrição do tal árbitro de vídeo. Trata-se do seguinte: interpelado por um instante de incerteza factual, como, digamos, saber se foi pênalti ou não foi, o juiz interrompe a partida, corre até um pequeno “altar” instalado na entrada dos vestiários na lateral do campo (suponho que você tenha a memória, ainda que longínqua, da planta de um estádio de futebol) e ali se posta em recolhimento silente, de costas para o estádio. No “altar”, o que o espera é um monitor, uma tela eletrônica onde o juiz vê, por outros ângulos, a jogada que o deixou em dúvida. Quem assiste à partida pela televisão – e, portanto, já viu o replay umas 400 vezes, até em câmera lenta – tem a impressão de que o pobre homem faz uma oração ali parado, à espera de uma verdade que se lhe revelará.

Enquanto isso, os jogadores aguardam em campo, disciplinados como recrutas. Uns esfriam. Outros olham o céu ou batem as chuteiras contra o piso verde. A maioria gesticula e faz careta. Eles sabem que estão em cena e, com a consciência teatral de quem atua profissionalmente, proferem discursos gestuais e faciais segundo os códigos imagéticos ditados pelas leis do espetáculo. Alguns erguem os braços vigorosamente com indignação a reclamar que “foi pênalti”. Outros se aquietam, mãos espalmadas para cima, com a expressão aparvalhada: “Não foi pênalti”. Com isso o script da partida de futebol incorpora mais um recurso dramático e o suspense se instala. Vamos do nada ao nada eletrônico. A novidade na várzea russa é a arbitragem se alimentar de LED.

Mas, a rigor, a novidade não é novidade. É apenas a releitura de um verso antigo. Isso que acaba de chegar aos “gramados” – na expressão dos narradores profissionais que animam as transmissões dos jogos na TV – já é comum em outros esportes, além de ser a norma na vida social há muito tempo: à imagem eletrônica se atribui a função de separar a verdade da mentira.

A imagem eletrônica tem o monopólio da mediação entre os olhos humanos e a dita realidade. Um olho nu não vale mais nada, não tem credibilidade alguma. O espaço entre os homens e a natureza, que um dia já foi habitado pela cultura, hoje se encontra invadido e ocupado por esse amontoado de dispositivos que se ligam na tomada. É uma microcâmera de vídeo que entra pelo corpo do paciente para atestar que ele tem um tumor nas entranhas.

Quem bisbilhota a existência de corpos celestes são telescópios digitais que enxergam raios que nossa retina não registra. A câmera de vigilância avisa se um suspeito se acercou do seu portão. Casais enamorados trocam nudes no WhatsApp. Juras de amor e de desejo cruzam o ciberespaço traduzidas na língua universal das imagens (e transcodificadas em bits). Mensagens de ódio seguem as mesmas trilhas. No ponto de ônibus, a moça usa o celular para retocar a maquiagem. Em Marte, um robô de olhos artificiais detectou a presença de uma molécula que indica que houve vida por lá. Nos tribunais, cinzentos personagens togados aceitam como prova um filminho em que um cidadão parece correr na ponta dos pés, à noite, numa calçada escura, carregando uma valise preta. 

Eis então que agora, finalmente, no mundinho do futebol, o mais retardatário no pelotão dos mais retrógrados, o árbitro de vídeo passou a valer e entra em campo como instância recursal solene, como uma sacristia. Ou como um oráculo ambíguo e caprichoso.

Nos “lances” mais controversos, os fatos que o vídeo mostra são inconclusivos. Aí o vídeo responde com um enigma, uma charada, como a esfinge. O juiz precisa interpretar. Ele apita. Na sua discricionariedade, sobrevive a imperfeição humana. Os atletas voltam a correr atrás da bola em homenagem a uma humanidade que não tem mais fé em nada que não seja a imagem eletrônica, essa entidade suprema que governa a nossa vida e não resolve os mistérios de um chute ou de uma cabeçada.

JORNALISTA, É PROFESSOR DA ECA-USP