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O atual governo será legal e legítimo?

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Por Oliveiros S. Ferreira
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Nas paisagens que o Tempo traça, há colinas em que podemos olhar o passado e refletir sobre o futuro. Vejo a República Velha, a dos "coronéis", depois também chamada dos "bacharéis". Durante a República Risonha e Franca de 1946, houve quem preconizasse que tudo se resolvesse por pareceres técnicos, única maneira de romper a tradição bacharelesca, responsável pelo "Idealismo na Constituição". Meu olhar não alcança tão longe, mas consegue deter-se em 1955, quando o Congresso, apoiado em parte das Armas sublevadas e respaldado por parte da opinião política, violou duas vezes a Constituição na Novembrada, destituiu dois presidentes e votou o estado de sítio. Apesar do golpe de Estado flagrante, todos mantinham a sua fé no Supremo Tribunal Federal, que negou a segurança impetrada pelo presidente Café Filho. Negou porque, na opinião de eminente ministro, as Armas haviam feito o Direito.O Congresso Nacional decidiu restabelecer o título de presidente da República para o sr. João Goulart. Um observador político diria da desnecessidade disso - afinal, ele foi presidente da República de 1961 até 1964. O que o Congresso agora diz é que ele foi presidente até o fim de mandato em 1965. Foi?A decisão do Congresso é política e permitirá alterar os livros de História para confusão dos alunos de segundo grau, que não saberão como chamar os chefes de Estado subsequentes.Olhando o passado da colina do Tempo, vejo o Senado Federal aprovar, em sessão anterior, decreto legislativo declarando nula a sessão de 2 de Abril de 1964, quando o presidente do Congresso, senador Auro Soares de Moura Andrade, proclamou que o Brasil estava sem governo e declarou empossado como presidente interino o deputado Ranieri Mazzilli.Pretendendo ser lógico, ocorreu-me a pergunta: se a sessão foi declarada nula, a posse de Mazzilli na Presidência igualmente é nula. Com o que, ao entrar no Planalto, levado por Auro de Moura Andrade, Mazzilli nada mais seria do que um usurpador, como usurpadores seriam os generais que haviam editado o Ato Institucional n.º 1. Se eram usurpadores, todos os atos jurídicos que praticaram poderiam ser declarados nulos, a começar pela eleição de Castelo Branco. Eleito com base em lei feita por usurpadores, tudo o que Castelo fez deveria ser declarado ilegal e não existente. Pensando bem, até mesmo a eleição de Tancredo Neves e de José Sarney, a transformação do Congresso em Constituinte e a própria Constituição de 1988, elaborada por um Congresso eleito segundo leis feitas por uma sucessão de usurpadores.A colina na planície do Tempo está envolta por pesada neblina que não permite que passado, presente e futuro possam ser vistos com a clareza e a precisão do telescópio que fotografou Marte. Há outros que também se servem da colina para observar a planalto do Tempo. Um deles ponderará: "Ainda que tenha havido usurpadores, tudo o que foi feito foi legal. Afinal, o que o Estado faz é legal! Pode não ser legítimo, mas, então, é uma outra história e dever-se-ia ter o cuidado de colocar as coisas nos seus devidos lugares".É preciso ter muito cuidado quando se discutem a legalidade e a legitimidade da ordem jurídica de determinado período. O Tribunal de Nuremberg que julgou a elite do regime nazista pronunciou as sentenças com base na "lei" criada para a ocasião, na medida em que não havia lei positiva internacional que permitisse condenar os autores dos crimes cometidos durante o III Reich. Um tribunal secundário, que julgou os juízes alemães, defrontou-se com esse problema: afinal, os juízes julgaram com base na lei positiva vigente, que eram obrigados por juramento a cumprir. E no grande tribunal, como se sabe, a norma jurídica (?) que permitiu a condenação dos réus foi feita não por um Estado, mas pelas quatro potências vencedoras porque eram vencedoras. Como escreveu o general Guderian, se os alemães tivessem ganho a guerra e julgado ingleses e norte-americanos pelo Código Penal Militar dos EUA, possivelmente as penas tivessem sido igualmente duras, se não mais em muitos casos. No pós-guerra, o vencedor faz a lei, cujas legalidade e legitimidade são dadas pelo triunfo das Armas.A decisão do Senado declarando nula a sessão em que Goulart foi destituído cuidou da legitimidade do ato de deposição sem que se entrasse no mérito da legislação que veio a seguir. A rigor, teria sido difícil para o Senado invocar a ilegitimidade da eleição de Castelo Branco, pois a oposição da época, se não votou no marechal, participou da eleição, coonestando-a, portanto, tornando-a legítima. Paulo Brossard foi o único, na eleição de Emílio Garrastazu Médici, a denunciar a ilegitimidade do processo, recusando-se a coonestá-lo. Descendo, agora, a terreno menos nobre ou cuidando de assuntos vis, os membros do Congresso, situação e oposição, receberam os seus vencimentos durante governos militares porque autorizados a fazê-lo - e estavam autorizados por normas que se estabeleceram, agora, como ilegítimas.É dessa maneira, invocando-se princípios que não se cumprem na vida prática, que a História do Brasil de 1964 a 2013 é contada e será escrita. Não mais a partir de 1985, como querem alguns; afinal, a eleição de Tancredo e Sarney realizou-se de acordo com normas que um jurista poderia arguir como ilegítimas. E até mesmo a eleição do Congresso em 1986 poderia ser tida como tal, pois convocada e realizada com base no disposto na Constituição de 1979, que nada mais foi do que a emenda que a Junta Militar fez na de 1967, votada por um Congresso convocado por Ato Institucional baixado pelo presidente Castelo Branco. Com o que, tendo por base a decisão do Senado ao anular a sessão em que Goulart foi cassado, se pergunta: o regime em que vivemos é legal e legítimo ou não?*Oliveiros S. Ferreira é professor da USP e da PUC-SP e membro do Gabinete e Oficina de Livre Pensamento Estratégico. Site: www.oliveiros.com.br