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Opinião|O Brasil num mundo conturbado

Cabe ao Brasil, em consonância com a Constituição, dar na sua política externa atenção à ambição normativa da pauta internacional

Atualização:

Está difícil entender como está funcionando o que Camões nomeou “a grande máquina do mundo”. Está mais fácil apontar os ventos do Norte e do Sul da tempestade que a ameaça com sua ruína, também evocados n’Os Lusíadas. Esta tempestade e os ventos de suas tensões difusas tornam cada vez mais complexo enfrentar três grandes desafios diplomáticos que permeiam a vida internacional contemporânea. Como identificar e articular interesses comuns e compartilháveis para lidar com os grandes problemas mundiais? Como operar a governança da economia globalizada, que tem como um dos seus desdobramentos a irradiadora repercussão da desigualdade entre os Estados e nas sociedades? Como gerenciar a Torre de Babel da diversidade cultural e do conflito de valores, até mesmo nas formas mais extremas dos autocentrados fundamentalismos religiosos e políticos? Estes desafios se colocam num instável mundo em mudança, de polaridades mais indefinidas que definidas e no qual o jogo dos interesses se mescla com a geografia das paixões. Nele operam simultaneamente, numa dialética de mútua implicação, o ímpeto das forças centrífugas, dos nacionalismos excludentes, da xenofobia, dos fechamentos protecionistas, e o peso das forças centrípetas. Estas propiciaram pela ação da economia e da revolução científico-tecnológica a interdependente unificação do campo diplomático do planeta, aprofundada pelo ciberespaço da era digital. Encontrar o lugar apropriado do Brasil neste mundo, onde também atua a lógica própria das muitas regiões que integram a arquitetura do sistema internacional, é a tarefa da política externa. Esta objetiva traduzir necessidades e aspirações internas em possibilidades externas. Isso significa identificar como o País, à luz das suas especificidades, se situa nos campos dos valores, das relações econômicas e da paz e da guerra. Uma das especificidades, inclusive histórica, do Brasil como país de escala continental, dotado de massa crítica, é não estar no centro e não ser foco de tensões que permeiam o mundo. É o que nos diferencia do que acontece em outras regiões e de outros países de escala continental e grande presença internacional, como China, Índia, Rússia e EUA, e da Europa, cujo soft-power se está vendo corroído com tendências centrífugas afloradas com o Brexit. No campo dos valores, a Carta da ONU introduziu ambições normativas na pauta internacional, de que resultou a importância atribuída aos direitos humanos e à democracia. A “ideia a realizar” da agenda normativa é evitar que dada a nova vizinhança universal esta seja mais construtiva e promissora que o aumento do ódio mútuo e da irritabilidade de todos contra todos. A geografia das paixões está minando essa ambição normativa. O mais visível drama é a maré montante da massa de refugiados – os expulsos da trindade Estado-povo-território – que, sem o benefício da hospitalidade universal, não encontram seu lugar no mundo. Cabe ao Brasil, em consonância com a Constituição, dar na sua política externa atenção à ambição normativa da pauta internacional. No âmbito regional, merece prioridade a situação da democracia e dos direitos humanos na Venezuela, vizinho em condições pré-falimentares. A agenda da segurança enfrenta a clássica dicotomia paz/guerra, que é a situação-limite da vida internacional. Num mundo unificado a paz é indivisível. No entanto, afirmar diplomaticamente essa indivisibilidade no momento atual está cada vez mais difícil, entre outras razões, porque inexiste uma visão compartilhada, em especial dos países militarmente mais poderosos, sobre que tipo de ameaça à paz põe em questão o interesse coletivo de todos e que tipo de uso da força deve ser proscrito. A situação da Síria ilustra essa afirmação. Nossa região está menos exposta que outras, até porque a cooperação argentino-brasileira iniciada na década de 1990 afastou os riscos da nuclearização militar que hoje rondam outras regiões. No âmbito regional, cabe, além de apoiar o acordo de paz na Colômbia – grande vitória da razão sobre a violência –, revitalizar as instâncias de cooperação, fortalecendo o entendimento, tendo em vista não absorver as tensões existentes no funcionamento da máquina do mundo. O que queremos e podemos obter do comércio internacional, dos fluxos financeiros e de investimentos é o cerne da nossa agenda econômica. Essa tarefa tem como nota a emergência da China e opera no horizonte das atuais instabilidades da economia mundial, que nos afetam diretamente. Distingue-se tanto pela erosão da abrangência das instituições multilaterais, como FMI e OMC, quanto por negociações comerciais de grande amplitude regional – transpacíficas e transatlânticas – que enfrentam dificuldades de efetivação também pela ação das forças centrífugas. Cabe ao Brasil explorar as brechas que este contexto entreabre. No âmbito regional é relevante reposicionar o Mercosul, tanto fortalecendo seu papel na agenda mundial da segurança alimentar quanto adensando, pelo potencial da conectividade, o relacionamento com os vizinhos do Pacífico. Concluo com uma referência à agenda do meio ambiente e do desenvolvimento sustentável, tema transversal e global que passa por mudanças na matriz energética dos países, transita pelo potencial de eficiência e competitividade de economias de baixo carbono e tem uma dimensão no campo dos valores, relacionada às concepções de vida em sociedade. É matéria em que a cooperação internacional é imprescindível, mas difícil pois é intrusiva das soberanias. Esta é uma agenda em que o Brasil tem a legitimidade de ter sido o país-sede, catalisador das novas perspectivas trazidas pela Rio-92 e que se viu adensada pela atuação na Conferência de Paris de 2015. Nesse campo o Brasil é uma grande potência. Nenhum dos temas da sustentabilidade – das mudanças climáticas à biodiversidade – pode ser equacionado sem a presença brasileira. Essa é uma agenda de futuro a que cabe dar prioridade para benefício do Brasil e do mundo. * Professor emérito do Instituto de Relações Internacionais da USP, foi ministro das Relações Exteriores no governo FHC