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Opinião|O Brasil que poderia ter sido

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Atualização:

A última disputa eleitoral no Brasil opôs duas visões muito distintas: uma que privilegia a responsabilidade fiscal, o controle da inflação e a livre-iniciativa; e outra que considera o Estado como o grande indutor de desenvolvimento, sem se preocupar com o custo desse modelo para a saúde econômica do País. Como se sabe, o eleitor escolheu a segunda visão, defendida pela presidente Dilma Rousseff e por seu partido, o PT. Isso significa que a maioria do eleitorado chancelou um discurso segundo o qual somente o Estado é capaz de manter os níveis de emprego e renda obtidos nos últimos tempos - quando deveria saber que o gasto estatal excessivo gera inflação e perda de dinamismo econômico e isso, mais cedo ou mais tarde, comprometerá justamente a geração de empregos e a distribuição de renda. Como mostra o filósofo Antonio Paim em seu extraordinário livro Momentos Decisivos da História do Brasil (Vide Editorial), recentemente relançado, o eleitorado brasileiro parece de fato dar pouca importância ao endividamento do Estado desde que este continue a ser o provedor infalível, garantindo a todos, independente de seus méritos e esforços, o direito a pelo menos um naco de suas gorduras. É a permanência, na mentalidade nacional, da visão de que o Estado é parte do patrimônio pessoal daquele que detém o poder e que para premiar os que lhe dedicam fidelidade distribui prebendas. O patrimonialismo brasileiro não é novidade, foi estudado já nos anos 1950 por Raymundo Faoro, em seu clássico Os Donos do Poder. O mérito do livro de Paim está em demonstrar que o patrimonialismo e seus efeitos mais evidentes - isto é, o subdesenvolvimento, a corrupção e a desmoralização da política - não são uma fatalidade no Brasil. Eles são fruto de escolha deliberada dos brasileiros. Houve ao menos três momentos na História nacional - os "momentos decisivos" a que Paim alude em seu trabalho - em que era possível trilhar outro caminho, um que levasse o País à plena realização de seu potencial. A metodologia de uma história contrafactual, escolhida por Paim, embute o risco de resultar em mera especulação, isto é, apenas um exercício intelectual, sem correspondência com a realidade. Paim não cai nessa armadilha, pois demonstra, com grande erudição e farta documentação, que as alternativas existiam de fato - e foram conscientemente desprezadas cada uma em seu devido tempo, mas sempre tendo como motivação a hostilidade ao investimento e ao lucro privado. O primeiro "momento decisivo" foi o enfraquecimento do empreendimento açucareiro no início da era colonial, quando o Brasil tinha uma economia mais próspera que a dos Estados Unidos. Paim demonstra que a Inquisição teve papel central nesse processo de destruição ao perseguir os judeus, justamente os maiores investidores da indústria da cana-de-açúcar. Ao lado da Contrarreforma, a Inquisição foi responsável por difundir no Brasil "valores contrários ao enriquecimento". É assim que, na opinião de Paim, a "opção pela pobreza" se torna "uma das mais sólidas tradições da cultura brasileira". Quando a riqueza da cana foi substituída pela fortuna do ouro, esses recursos não foram usados para atividades produtivas. O grande feito do reinado de dom João V na época foi a construção do fabuloso, mas inútil, Convento de Mafra, cujo esplendor, mostra Paim, é um verdadeiro monumento às escolhas erradas. Nem mesmo as reformas do marquês de Pombal serviram para resgatar o valor do empreendimento privado - ao contrário: a burocracia estatal consolidou-se como a classe dominante em Portugal, pois o Estado era responsável pela promoção da riqueza, uma tradição que permanece no Brasil atual. O segundo "momento decisivo" foi o sufocamento das iniciativas liberais logo que a República foi instalada. Segundo Paim, o liberalismo, alimentado principalmente no Segundo Reinado, introduziu no País uma nova tradição cultural, capaz de dar o impulso necessário ao desenvolvimento sustentado. No entanto, a República proclamada pelos militares tratou de resgatar o patrimonialismo e os valores da Contrarreforma, resultando num sistema de representação política precário, graças ao qual a solução autoritária esteve sempre no horizonte. Por fim, Paim localiza o terceiro "momento decisivo" entre os anos 1930 e 1990, quando se frustra a superação dos entraves ao capitalismo e se assegura "o predomínio econômico, social e político da burocracia estatal". Para que isso acontecesse foi necessária a consolidação de um modelo em que a democracia não se exerce por meio de partidos políticos, e sim por forças sociais "ligadas às mais negativas tradições nacionais, a começar do espírito contrarreformista, expresso no ódio ao lucro e à riqueza" - e então o Estado se torna "senhor absoluto da vida econômica do País". Essa situação se cristalizou, diz o historiador, na Constituição de 1988, que ficou amarrada ao gigantismo estatal. Paim entende que a chegada do PT ao poder, em 2003, evidenciou a resiliência dos setores retrógrados, interessados na manutenção do patrimonialismo tradicional. O loteamento do Estado serviu então à cooptação da base necessária para a manutenção do poder. A força petista é ainda maior porque disfarça o patrimonialismo com o discurso da esquerda dita "progressista", tão caro à intelectualidade que enxerga o problema do desenvolvimento sempre sob o ângulo da luta de classes. Desse modo, na visão de Paim, os brasileiros em geral tornaram-se indiferentes à corrupção, porque aceitam que a burocracia estatal, poderosa e inalcançável, disponha do ente público como se fosse propriedade particular. Não causa espanto que ministérios sejam distribuídos como capitanias hereditárias, nem que a Petrobrás e outras estatais sejam rapinadas. Em outras palavras, conclui Paim, o patrimonialismo brasileiro é tão vigoroso e entranhado que se tornou "mais forte que a sociedade". * JORNALISTA

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