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O calote dos precatórios

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Por Redação
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Empilhem-se os maiores escândalos da safra deste começo de ano no Congresso Nacional. O do deputado-corregedor que escondia ser dono de um castelo de R$ 25 milhões e transferia dinheiro da Câmara para suas próprias firmas; o do diretor-geral da Casa que omitiu residir numa mansão em Brasília; o dos R$ 6,2 milhões pagos a 3.800 funcionários por horas extras em pleno recesso parlamentar; o da legião de diretores, secretários e subsecretários de quase nada ou coisa nenhuma; o da farra com as passagens aéreas compradas com verba oficial; o do envio de servidores a dois Estados para campanha política e proteção de propriedades do presidente do Senado? Pois bem: a pilha será pequena perto da escandalosa legislação que instituirá, para todos os efeitos práticos, o calote das dívidas atrasadas de Estados e municípios com empresas e pessoas físicas, decorrentes de sentenças judiciais definitivas - os malfadados precatórios. Eles somam qualquer coisa como R$ 100 bilhões. Só o Estado de São Paulo deve R$ 16,2 bilhões, ou 23% de sua receita líquida anual. A Prefeitura da capital, R$ 11,2 bilhões, ou 40% da receita. Na quarta-feira, em um surto excepcional de produtividade, o Senado aprovou em três votações sucessivas (uma na Comissão de Constituição e Justiça e duas em plenário), com apenas uma abstenção e nenhuma objeção, o projeto de emenda constitucional que premia governadores e prefeitos inadimplentes com um novo regime para a "quitação" - as aspas são indispensáveis - daqueles débitos. O texto aprovado a toque de caixa, sob a pressão de pelo menos uma dezena de prefeitos, liderados pelo paulistano Gilberto Kassab (DEM), equivale a uma versão pervertida do conhecido "devo, não nego, pagarei quando puder". O novo mote é "devo, não nego, pagarei quando quiser". Trata-se, literalmente, do cúmulo da desfaçatez - pelo menos por enquanto. Pela Constituição, o poder público tinha oito anos para pagar precatórios - que podem ser alimentares (salários, pensões, aposentadorias e assemelhados), ou relativos a desapropriações, ou por obras e serviços executados, para citar os casos mais frequentes. A Carta havia dado preferência aos débitos alimentares e estabelecido o princípio da ordem cronológica para o pagamento dos demais, com os valores atualizados por uma fórmula que combina inflação mais juros de 12% ao ano. O não-pagamento seria punido com o sequestro de recursos do inadimplente. Em 2000, os devedores foram contemplados com um prazo adicional de dez anos. Já a proposta que acabou de passar a galope no Senado e deve ser ratificada a qualquer momento na Câmara representa "uma indulgência plena para o calote como ferramenta permanente de gestão pública", no entender da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Os desembolsos dos municípios e Estados com precatórios acima de 30 salários mínimos, num caso, ou 40, no outro, poderão ficar restritos a um porcentual das respectivas receitas líquidas anuais. A seu arbítrio, os devedores ou saldarão o passivo todo em 15 anos ou destinarão a isso um porcentual constante de suas receitas (até 2% no caso dos Estados e 1,5% no caso das prefeituras). Desse bolo, 40% servirão ao pagamento integral dos precatórios em ordem crescente de valor (o que significa que os primeiros da fila original poderão tornar-se os últimos) e 60% irão para os credores que concordem em receber só uma fração do que têm direito - e o lugar de cada qual na fila dependerá do tamanho da parcela a que tiver renunciado em leilão eletrônico. As dívidas serão corrigidas apenas pela TR mais 0,5% ao mês, como a caderneta de poupança. Nesse regime especial, enfim, Estados e municípios ficam livres do sequestro de recursos. Assim se consuma uma farsa em três atos. No primeiro, a autoridade desapropria um bem privado para fazer uma obra, sabendo que conseguirá empurrar o pagamento para o sucessor. No segundo, o sucessor diz que não tem nada com isso e ignora a dívida líquida e certa que herdou - levando ao extremo o sentido do termo cinismo. No terceiro, enfim, desaba uma violência legislativa sob a qual o infeliz credor ou abre mão de uma porção polpuda do dinheiro que é seu (já subatualizado, por sinal) ou, como diz o presidente da OAB, Cezar Britto, "levará 100 anos para receber".