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O Consenso de Kampala

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Por Marcel Fortuna Biato
3 min de leitura

Há séculos a humanidade condena o belicismo e seu principal vetor: a guerra de conquista ou agressão. Fracassaram, no entanto, desde as Convenções de Haia no início do século 20, sucessivas tentativas de estabelecer mecanismos obrigatórios de solução pacífica de controvérsias. Optou-se por fim pela criação do Conselho de Segurança (CS) da ONU, que entronizou os vencedores de 1945 como avalistas da paz mundial. Com o fim da guerra fria o poder mundial tornou-se mais difuso e a arquitetura de segurança coletiva perdeu eficácia e credibilidade. Ganha ainda mais urgência a pergunta: como coibir a agressão? Há 12 anos tivemos uma vitória histórica com o estabelecimento do Tribunal Penal Internacional (TPI), que julga casos graves como genocídio, crimes de guerra e contra a humanidade.Em junho, em Kampala (Uganda), a comunidade internacional fez uma avaliação desse esforço inovador para combater a impunidade. Já foram detidas várias ex-autoridades acusadas de crimes bárbaros e há indícios de que as punições estimularam governos a reprimir abusos domesticamente. Mas a integridade do TPI estava comprometida, pois o crime de agressão permanecia ausente. Embora haja consenso de que constitui a maior ameaça à paz e à segurança coletiva, sua plena incorporação ao Estatuto de Roma vinha sendo postergada por temor de alguns países de que se pudesse "politizar" o tribunal. Haveria o risco de que motivações inconfessáveis levassem o promotor a denunciar operações militares "legítimas", com prejuízo para esforços humanitários ou ações de legítima defesa que circunstancialmente não contam com explícito aval multilateral.Efetivamente, ao determinar que um indivíduo cometeu crime de agressão, o tribunal pode, indiretamente, caracterizar como "agressor" seu Estado de origem. Alguns países se preocupam em resguardar ao máximo a liberdade de ação em favor de suas estratégias de segurança e, dessa forma, blindar seus agentes contra qualquer sanção penal. O exemplo mais citado foram os bombardeios da Otan sobre a antiga Iugoslávia, em 1999, para coibir massacres contra a minoria bósnia.Mas argumentar que a introdução do crime de agressão levaria à "politização" do tribunal é ignorar que questões de paz e segurança coletiva são por definição complexas. São, no entanto, mais bem enfrentadas por meios institucionais com apoio e legitimidade multilateral. Se o sistema não funciona bem, a melhor resposta não é acelerar seu ocaso, enfraquecendo suas instituições. Esse era o risco que corríamos se aceitássemos limitar a autonomia do TPI.Em Kampala enfrentamos o desafio de solucionar o impasse independência x tutela do TPI pelo CS. A resposta do Brasil e de outros países que desejam viabilizar a ação dessa Corte Penal foi propor que se reforçassem suas esferas de controle interno. O CS talvez seja o órgão principal na manutenção da paz e segurança, mas deve trabalhar em harmonia com as demais instituições previstas na Carta da ONU, no espírito de checks and balances que orienta todo sistema constitucional democrático. Para o Brasil e outras delegações reunidas em Kampala, permitir ao conselho atuar como voz isolada e irrecorrível seria cristalizar um statu quo injusto e desequilibrado. Seria incoerente com nossa defesa de reforma da governabilidade global e, em particular, do CS que passássemos a favorecer a situação privilegiada desse órgão, pouco representativo do equilíbrio do poder mundial e ainda menos transparente e democrático em suas decisões.Chegou-se, ao fim da conferência, a uma solução de conciliação que preserva a integridade do Estatuto de Roma e, portanto, a autonomia do TPI. Além dos mecanismos de jurisdição correspondentes, foram aprovados a definição e os elementos do crime de agressão. Aprovou-se ainda um colegiado interno do tribunal, que terá de referendar a ação do promotor em caso de crime de agressão. Em contrapartida, não haverá controles externos pelo CS. Evitou-se que a ação do tribunal ficasse condicionada ao consentimento do "Estado agressor", um despropósito que inviabilizaria qualquer juízo efetivo.Resguardar a integridade do Estatuto de Roma exigiu, em troca, algumas concessões. Primeiro, o crime de agressão não estará efetivamente nos estatutos do tribunal antes de 2017. Ademais, qualquer Estado-parte do estatuto poderá, unilateralmente, retirar-se da jurisdição relativa ao crime de agressão. Terá, porém, de fazê-lo publicamente, o que implica o custo de afastar-se de um consenso cada vez mais universal. O preço político será necessariamente alto, uma vez que muitos se perguntarão se esse país estará premeditando alguma ação armada. Tampouco estarão sob a jurisdição do TPI para o crime de agressão cidadãos de países que não aderiram ao estatuto (grandes potências como EUA, Rússia, Índia e China). Aos que criticam essa ausência, preferindo que se fizessem concessões para assegurar a presença desses países-chave, respondemos: o que fará o tribunal mais forte e respeitado é sua ação coerente e consistente com os princípios e objetivos que lhe deram origem. À medida que se amplie sua credibilidade e sua eficácia, mesmo os países poderosos hoje ausentes se sentirão motivados a aderir ao TPI, seja por interesse sincero em promover a verdadeira segurança coletiva, seja por temor de sua força.O fortalecimento do TPI representa muito mais do que uma vitória no combate a crimes que ferem nossa consciência humanista. Representa passo decisivo na luta contra a impunidade e na construção da paz sustentável e duradoura. Vivemos num mundo cada vez mais interdependente, onde se multiplicam ameaças e desafios interconectados. Para problemas globalizados demandam-se respostas e soluções igualmente universais. Não pode haver, em nenhuma esfera, exceções quando se trata de instituir mecanismos de controle e fiscalização. O risco é a perda de credibilidade e eficácia na construção de uma governança global para o século 21. É a lição e o desafio que nos deixa o Consenso de Kampala.EMBAIXADOR, É CHEFE DA ASSESSORIA ESPECIAL DA PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICAH