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O credor de Kirchner

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Por Redação
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Néstor Kirchner e Hugo Chávez se entendem. Na véspera da rápida visita do presidente venezuelano a Buenos Aires, o jornal La Nación reproduziu declarações da primeira-dama e candidata à sucessão do marido, a senadora Cristina Kirchner, que em outras condições e em outros lábios provocariam irada reação do caudilho. "Chávez foi eleito democraticamente", disse a senadora entre outras críticas, "mas seus gestos não fazem bem à imagem internacional da democracia venezuelana." A candidata, como se comenta abertamente nos círculos governistas de Buenos Aires, está se afastando tão discretamente quanto possível do caudilho venezuelano - o benfeitor do governo de seu marido -, seja para aplainar o caminho para a Casa Rosada, seja para facilitar contatos com a comunidade internacional. Daí o governo argentino ter decidido tratar a visita de Chávez com uma discrição inaudita. Mas o mais espantoso foi que o desabrido coronel - conhecido por não respeitar protocolos e impor o seu estilo histriônico onde quer que vá - se comportou com comedimento exemplar. Basta dizer que o seu discurso na Casa Rosada - que normalmente seria uma arenga capaz de competir em extensão com as de Fidel Castro, recheada de insultos ao presidente Bush e de ataques aos Estados Unidos e ao capitalismo - não durou mais de dez minutos. E ainda fez um rapapé à mulher do anfitrião: "Como dizem até as pedras, Cristina Kirchner será a próxima presidente dos argentinos e argentinas." Seguiu-se a assinatura de acordos para a transferência de tecnologia argentina para a construção e operação de pelo menos meia centena de estabelecimentos fabris com os quais Chávez pretende acelerar a estatização da economia venezuelana, rumo ao "socialismo do século 21". Mas Chávez não foi a Buenos Aires para receber ajuda e sim para reforçar o crédito que tem junto a Kirchner e que faz do governo argentino um aliado do projeto chavista para a América Latina. A Argentina, que já foi um dos países mais ricos do mundo, além de exportador de petróleo e gás, hoje é um país carente de dinheiro e de energia. Suas reservas energéticas foram dilapidadas, porque não foram feitos investimentos para a reposição. E, com o calote da dívida externa, dado em 2002, o país perdeu crédito junto à comunidade financeira internacional. Quem supre a Argentina de energia e dinheiro é a Venezuela de Hugo Chávez. Néstor Kirchner, num gesto típico dos populistas inconseqüentes, rompeu relações com o FMI, como se proclamasse a independência financeira da Argentina, apenas para se tornar dependente da generosidade muito interessada de Hugo Chávez. Em Buenos Aires, Chávez comprometeu-se a financiar a construção de uma usina de reprocessamento de gás liquefeito de petróleo no valor de US$ 400 milhões. Assim, além do petróleo que já fornece, abastecerá a Argentina com 10 milhões de metros cúbicos diários de gás, o equivalente a 10% do consumo do país. Além disso, comprometeu-se a comprar US$ 1 bilhão em títulos da dívida argentina, o que elevará para cerca de US$ 5,3 bilhões o estoque de bônus em poder da Venezuela. Sem essa ajuda, Kirchner teria dificuldades para quitar títulos no valor de US$ 2,5 bilhões que vencem este ano, já que o mercado financeiro continua fechado para a Argentina. A generosidade de Chávez não é desinteressada. Energia e dinheiro, em primeiro lugar, são as alavancas de sua política externa. Em segundo lugar, os negócios com a Argentina são rentáveis. O pagamento do gás e do petróleo é feito a longo prazo, mas os preços são salgados. Os títulos da dívida têm uma remuneração mínima de 11%, praticamente o dobro da taxa cobrada pelo FMI. Além disso, esses bônus são arbitrados pelos bancos venezuelanos, que ganham na operação algo entre 12% e 20%. Com a operação, reduz-se a liquidez interna da Venezuela, o que tem contribuído para manter a inflação no (elevado) patamar dos 18%/19% ao ano. Mas esse efeito antiinflacionário tende a se dissolver no médio e longo prazo, já que a produção interna de bens (6,7%) não acompanha o ritmo de crescimento de gastos dos consumidores (44,3% em 12 meses). O fato é que Chávez é credor de Kirchner. E esta não é a deuda chica do tango.