
22 de fevereiro de 2015 | 02h05
Pronto! O link vai tomando corpo: cidadania é qualidade do cidadão e cidadão é o habitante da cidade como espaço das relações primárias entre governantes e governados. Os governantes a representar a pessoa jurídica do Estado, os governados a "presentar" (Pontes de Miranda) a difusa ou não personalizada instância da sociedade civil. Cada um desses governados a encarnar a referida figura do cidadão. Mas não de um cidadão aquoso e, nessa medida, tão insípido, inodoro e incolor quanto a água potável que deu de faltar nos lares brasileiros. Ao contrário, cidadão como integrante orgânico ou militante ou engajado da sociedade civil perante o Estado. Envolvido com o dia a dia da população, portanto.
Daqui se deduz que o típico do cidadão é se interessar por tudo o que é de todos. Sempre na perspectiva de servir ao todo social mesmo. O cidadão como símbolo da pessoa altruísta ou de alguém que veste a camisa da sociedade. Alguém que faz viagem de alma, e não viagem de ego. Tão socialmente participativo que no "Século de Péricles" (440-404 a.C.) se chegava a dizer: "Sou livre porque participo". E não "participo porque sou livre", como atualmente se fala. O que pressupõe a mais desembaraçada busca de informações sobre os negócios públicos para que, num segundo momento, o cidadão já se posicione mais conscientemente como soberano (a soberania popular é o segundo fundamento da República, nos termos do inciso I do citado artigo 1.º e da cabeça do artigo 14 da Magna Carta federal). E é como soberano que ele vai protagonizar o voto direto e secreto, a iniciativa popular de lei, o plebiscito e o referendo (cabeça e incisos do mesmo artigo 14).
É sob esse entendimento jurídico de cidadania que a nossa Constituição volta muitas vezes ao tema. E volta em sentido afirmativo ou de forte prestígio. Para fazer da cidadania um mecanismo de fiscalização, controle e acionamento do poder. Um necessário instrumento de cobrança, denúncia, representação, queixa... e também de colaboração, claro! O cidadão a vitalizar o lema de que "o preço da liberdade é a eterna vigilância" (frase que ninguém sabe ao certo se de autoria de Thomas Jefferson ou Stuart Mill). Ele totalmente livre para se informar, vigiar e cuidar, seja por conta própria, seja requestando as autoridades. Mas sempre do lado de fora do Estado, porque ver o Estado a partir dele mesmo é ter a vista embaçada. O olhar anuviado de quem é observador e parte ao mesmo tempo. Não assim com o cidadão enquanto agente exógeno perante ele, Estado, de sorte a poder assumir-se como um pássaro solto na amplidão dos seus personalíssimos cuidados para com a pólis. "Livre, leve e solto" (Nelson Motta), inclusive para impedir que o atávico sono da nossa "pátria mãe tão distraída" venha a colocá-la no despenhadeiro das mais "tenebrosas transações" (Chico Buarque).
Assim é que se explica, por ilustração, o seguinte catálogo de normas constitucionais: os incisos XXXIII e LXXIII do artigo 5.º, este a criar o mecanismo da "ação popular" e aquele a consagrar o direito de "receber dos órgãos públicos informações de (...) interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral"; o § 3.º do artigo 37, remetendo à lei "as formas de participação do usuário na administração pública direta e indireta", de maneira a que sejam especialmente regulados "as reclamações relativas à prestação dos serviços públicos em geral" (inciso I), "o acesso dos usuários a registros administrativos e a informações sobre atos de governo" (inciso II), assim como "a disciplina da representação contra o exercício negligente ou abusivo de cargo, emprego ou função na administração pública" (inciso III); o inciso IV do §2.º do artigo 58, que insere nas competências das comissões técnicas do Congresso Nacional e de suas Casas "receber petições, reclamações, representações ou queixas de qualquer pessoa contra atos ou omissões das autoridades ou entidades públicas"; o §2.º do artigo 74, que faz de qualquer cidadão "parte legítima para, na forma da lei, denunciar irregularidades ou ilegalidades perante o Tribunal de Contas da União".
Bem, cheguei aonde queria chegar: o Decreto Executivo federal n.º 8.243, de 23 de maio de 2014, que me parece equivocado quanto aos conceitos constitucionais de cidadania e sociedade civil. E porque equivocado, traz uma e outra para dentro da União. Busca integrá-las à estrutura do poder, para que elas atuem mais e mais ali na própria ossatura orgânico-administrativa da nossa pessoa federada central. Ora no interior desse ou daquele órgão, ora como parte dessa ou daquela comissão, ora na intimidade estrutural desse ou daquele conselho... e por aí vai. Mistura de papéis que mal disfarça duas coisas: a imperial liderança do Estado em face dela, sociedade civil, e o recolocar da altaneira figura do cidadão na subalterna condição de súdito. Isso porque, assim postadas do lado de dentro dos aparelhos de Estado, a sociedade civil e a cidadania não têm o que fazer senão ver quebrantadas ainda mais as suas forças e facilitado o que em tais aparelhos é histórico lugar-comum: botar as mangas de fora. Esse mesmo Estado que, no Brasil, chegou antes da sociedade e até hoje não a reconhece como a única razão de ser da sua jurídica existência. Estado que demora demais a entender que os súditos da sepultada monarquia têm o direito de se transformar nos cidadãos da República finalmente partejada.
Temo pelo pássaro da cidadania a trocar o voo pelo saltitar na gaiola dos conselhos populares ou coisa que o valha.
CARLOS AYRES BRITTO, MESTRE E DOUTOR EM DIREITO CONSTITUCIONAL PELA PUC-SP, MEMBRO DA ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS JURÍDICAS, FOI PRESIDENTE DO TSE E DO STF
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