23 de julho de 2010 | 00h00
O majestoso Encontro das Águas fascina brasileiros e turistas de outros países que vêm conhecê-lo (isso não é "importância econômica"?). O escritor Fernando Sabino escreveu (O Encontro das Águas, Editora Record, 1977): "Tudo aqui parece encerrar um sentido simbólico; os rios, as florestas, os animais e as plantas, os próprios homens. Aqui a natureza nos dá a sensação vertiginosa de que um dia fomos deuses. Aqui a alma se expande até perder-se no vazio onde o espaço e o tempo se confundem, para reencontrar-se numa vida além da vida, em que tudo se harmoniza - tempo e espaço, civilização e natureza, homens e deuses - numa perfeita integração."
Pois é nas proximidades desse fenômeno e em área de propriedade da União que se quer levar adiante um projeto de R$ 220 milhões, bancado por duas grandes empresas, com forte apoio em áreas políticas locais. A Secretaria do Patrimônio da União, em Brasília, deu parecer contrário, mas a Gerência Regional no Amazonas opinou a favor do empreendimento e com isso liberou a regularização de "faixa de terreno marginal do rio federal" (Amazonas). O Ministério Público Federal conseguiu na Justiça, em Manaus, medida liminar sustando o licenciamento - mas ela foi revogada em Brasília pela Justiça Federal. Agora o Ministério Público estadual tenta reverter o quadro.
Segundo a proposta apresentada, o "cais de flutuantes será composto de 4 flutuantes de 65 metros de comprimento, 30 metros de largura (boca) e 4 metros de altura (pontal) cada um, perfazendo uma extensão total de 260 metros", à margem frontal ao Encontro das Águas. E tudo isso ocorre num momento em que se afirma universalmente a necessidade de reavaliar enfoques humanos diante de questões como mudanças climáticas, insustentabilidade de padrões de produção e consumo no mundo. O próprio Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma) está propondo implantar um novo índice que inclua o valor monetário dos serviços prestados gratuitamente pela natureza (fertilidade natural dos solos, regulação do clima e dos recursos hídricos, importância da biodiversidade para a criação de fármacos, etc.). E é com visões dessa natureza que precisam ser confrontados projetos que põem em risco patrimônios naturais e da biodiversidade. Neste momento mesmo estão no meio de polêmicas vários projetos de portos que implicariam esses riscos - em Santarém (PA), no litoral baiano, em Santa Catarina, no litoral norte de São Paulo.
Da mesma forma, o projeto considerado ameaçador para o Encontro das Águas que formam o Amazonas. Neste caso, precisa ser considerado também o patrimônio representado pelas visões da cultura popular amazônida - sempre tão desprezada. Segundo o escritor Márcio de Souza, ela só aparece como folclore "e depois que passa a polícia". Mas quem viaja pelos rios da Amazônia vai descobrir de repente - como o autor destas linhas -, no Rio Nhamundá, no Lago da Serra do Espelho da Lua (que nome!), que a lenda das amazonas, para os moradores da região, não é uma lenda . É História, com H maiúsculo: elas habitavam a região, sequestravam homens para ter relações sexuais e a eles entregavam os recém-nascidos, se fossem do sexo masculino; com a aproximação dos colonizadores europeus, "elas foram fugindo para o norte, até depois da última cachoeira, em Roraima". Poderá descobrir que a "democracia do consenso" de que fala o antropólogo Pierre Clastres está em pleno vigor entre os índios maués, à beira dos Rios Andirá e Marau. A eles devemos, entre outras coisas, a descoberta das propriedades energéticas do guaraná, reveladas por seu herói criador. E muito mais.
É preciso abrir ou ouvidos aos poetas, aos artistas, que conseguem incorporar a importância dessas culturas. Como o próprio Thiago: "Vem ver comigo o rio e suas leis./ Vem aprender a ciência dos rebojos,/ vem escutar os cânticos noturnos/ no mágico silêncio do igapó /coberto por estrelas de esmeralda" (Outros Poemas, Global Editora, 2007). Porque, diz ele, "de caminho de barcos sabe o mar. Os ventos é que sabem dos destinos".
Os ventos populares, com certeza, desaconselham a rota que põe em risco o Encontro das Águas. Então, convém ouvir de novo Fernando Sabino, ao visitar esse lugar: "Aqueles que se encontram na fase de industrialização estão correndo constantemente o risco de empobrecerem e de se desnortearem em vários rumos. Talvez amanhã a riqueza de um povo seja medida pelos seus esforços a favor da conservação da Natureza, do seu ambiente natural, ou seja, pela capacidade de conseguir preservar a sua própria alma." E, como sentencia ele, "não se desafia em vão a natureza".
JORNALISTA
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