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Opinião|O dia depois de amanhã

Atualização:

Não há bola de cristal, mas diante dos últimos fatos é plausível que o processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff tenda ao desfecho de um fim prematuro de seu mandato. Incerteza maior, no entanto, está mesmo nos rumos do País, pois há uma série de problemas que demorarão a ser equacionados. E, ao mesmo tempo, um sentimento de frustração toma conta da sociedade brasileira – qualquer que seja sua vertente política, neste momento de tão grande polarização. É preciso reagir a isso, compreender a natureza dos problemas e propor saídas.

A frustração tem diversas raízes. Uma delas se relaciona com o abismo entre o discurso da candidata Dilma e o Brasil real, o que certamente contribuiu para a corrosão da confiança dos brasileiros no governo e na presidente. Com efeito, o processo eleitoral de 2014 ultrapassou limites de civilidade e deixou feridas abertas no meio político; obstruiu as pontes necessárias em momentos de crise. A presidente Dilma está só. E muito menor do que saiu das urnas.

A economia patina a olhos vistos, seja pelos erros na condução da política econômica desde o início da década, seja por motivos estruturais. Desde 1991 a despesa pública vem crescendo acima da renda nacional. Com o fim do ciclo de ouro das commodities, o Brasil caiu na real: o Estado não “cabe” no produto interno bruto (PIB). Os brasileiros estão mais pobres e o desemprego aumentou. Em paralelo, a Operação Lava Jato contribui para aumentar o quadro de incerteza. Há uma sensação de que não existe saída para a crise, o que leva pessoas às ruas desde o início do ano passado.

Outra raiz das frustrações se aterra na fragilidade do nosso sistema político: os dois mais relevantes partidos, que se revezaram no poder nos últimos 20 anos – PT e PSDB –, dão sinais não apenas de crise, como também de fragmentação, perda de representatividade, de credibilidade e de importância na sociedade mais ampla, que tem autonomia diante dos partidos. O primeiro, após 13 anos no poder, está destroçado pela exposição em horário nobre das entranhas de práticas políticas que, supunha-se, o PT seria capaz de superar. O segundo, o PSDB, após o governo de Fernando Henrique Cardoso, perdeu identidade gradativamente: abdicando da possibilidade de construir propostas para o País, preferindo definir-se tão somente pelo seu contrário, como um antípoda petista.

Ambos perderam densidade política e o centro de importância dos dois campos que imaginavam representar: um, mais voltado para os movimentos sociais e a ação do Estado; o outro, mais liberal, voltado para os setores mais dinâmicos da sociedade. Enquanto se dedicam a um debate estéril, o sistema se fragmenta, até porque ainda não se encontraram atores políticos capazes de efetivamente substituí-los, tomando-lhes o eleitorado.

Efetivamente, acentua-se o advérbio, porque as ruas rugem como leões contra o governo e contra a política, e opções radicalizadas e autoritárias aparecem já não tão timidamente à esquerda e à direita. Sectariza-se o debate: nem sequer se pode vestir vermelho ou verde e amarelo. É uma sandice. Por falta da grande Política, o País começa a tangenciar alguns absurdos.

Se a política – a falta dela ou a má política – nos trouxe a este ponto, também é ela, a grande Política, que nos poderá levar a um melhor lugar. Sem ela o rugido das ruas não ressoa, não ganha forma, liquefaz-se em ressentimento puro e simples que se espalha no ar. Aguarda-se a próxima manifestação como se espera pela batalha final, até que nova frustração se venha instalar mais uma vez. Em resumo, há dois países que não se compreendem, se detratam, se ofendem e, ao final, toda essa fúria significa nada, além de mais frustração e ressentimento. Incendiários, é claro, aproveitam-se disso. Mas o Brasil sensato, moderado, uno e acolhedor que somos, de fato, clama por bombeiros.

É hora de a sociedade abraçar a Política, não de afastar-se dela. É hora de construir a transição. É hora de pensar no dia seguinte, depois de amanhã, quando continuaremos a existir como um só país, com ou sem Dilma.

O primeiro passo é o de garantir que, aconteça o que acontecer, a Operação Lava Jato vá até o fim: que se varra tudo o que houver de podre, que não seja abrupta e cinicamente interrompida. Se for o caso e havendo elementos, o “pau que deu em Chico” terá de “dar também em Francisco” – não se deve temer fazer o que é certo. Já sabemos que seu escopo é amplo e não há personagens de apenas um partido envolvidos. É preciso que a operação continue até que tudo seja investigado, esquadrinhado, e que todos os que estiverem envolvidos em crimes sejam exemplarmente punidos. O pior que nos pode acontecer é que a Lava Jato passe para a História como um mero golpe contra um grupo político em particular. A sociedade não aceitará algo que pareça um acordo que indique punição seletiva.

O outro ponto consiste em reestruturar a casa que hoje parece ruir. Uma reforma política, sobretudo da Política, é urgente. Pelos vícios do atual sistema, não há como fazer essa reforma com o Congresso que temos hoje e que tende a se favorecer de novas regras que ele mesmo vier a estabelecer. A Constituinte exclusiva para a reforma política, por mais polêmica que seja, faz-se necessária. Para esse fim seus membros devem ser novos e exclusivos; candidatos avulsos – desvinculados dos atuais partidos –, impedidos de disputar novos mandatos, teriam maiores condições de reorganizar o jogo sem advogar em causa própria.

Com isso se espera recompor o sistema político e as pontes do diálogo para reformas futuras, realizadas, aí, sim, por um Congresso regular capaz de construir um pacto que tanto “coloque o Estado dentro do PIB” como incorpore os mais pobres na sociedade, com democracia e transparência – estes, sim, os imperativos morais e políticos de qualquer sociedade. Chegou a hora, basta de política pequena, para desavenças de grupos e para visões tão sectárias quanto estreitas. Fica aqui a nossa crença na Política, a grande, nobre e imprescindível Política.

*Alexandre Schneider, Carlos Melo e Rubens Glezer são respectivamente, pesquisador do Centro de Economia e Política do Setor Público da FGV, cientista político e professor do Insper e professor da FGV Direito SP

Opinião por Alexandre Schneider
Carlos Melo
Rubens Glezer