Imagem ex-librisOpinião do Estadão

O ditador sírio se desmanda

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Por Redação
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Em 1982, o então ditador sírio Hafez Assad extinguiu um levante de radicais islâmicos contra o arquirrepressivo regime secular por ele dirigido havia 11 anos, mandando eliminar boa parte da população da cidade de Hama, o epicentro da revolta. Perto de 20 mil pessoas foram massacradas. Ontem, o seu filho Bashar, que assumiu o poder com a morte do tirano em 2000 e era tido como um reformista de mente aberta, até por ter vivido em Londres, onde estudou oftalmologia, mandou, ou consentiu, que tropas apoiadas por blindados invadissem Deraa, a poucos quilômetros da fronteira com a Jordânia.Foi ali que tomaram vulto as manifestações pró-democracia iniciadas em meados de março, na esteira dos movimentos que derrubaram os governos despóticos da Tunísia e do Egito, e que transformariam a Líbia em cenário de uma guerra civil, agora com participação ocidental. Segundo os relatos enviados ao exterior por moradores do lugar - a Síria fechou as portas à imprensa estrangeira -, as forças de segurança, estimadas em 3 mil homens, atiravam "em todas as direções". Soldados foram vistos recolhendo cadáveres, enquanto tanques cercavam uma mesquita onde civis haviam se abrigado.Desde a eclosão dos protestos no país, recebidos invariavelmente a bala pelo governo - causando mais de 300 mortes, das quais cerca de 120 apenas na sexta-feira e sábado passados, durante passeatas e funerais assistidos por pessoas desarmadas -, essa foi a primeira vez que o aparato da ditadura recorreu a blindados para atacar os seus opositores. Não espanta que tenha sido na cidade que os ativistas consideravam, com temerário otimismo, "território liberado". Como se não bastasse a sequência de expressões prévias da política de tratar os contestadores a ferro e fogo, a decisão de usar tanques contra eles confirma que Bashar está determinado a aniquilar por quaisquer meios a insurgência civil.Pode-se supor que, aos olhos do núcleo dirigente do regime, o endurecimento da repressão - que incluiu no domingo a prisão arbitrária de duas centenas de presumíveis oposicionistas, em diversas cidades sírias - está legitimado pelo fato de Bashar ter suspendido três dias antes o estado de emergência em vigor no país desde 1963, quando o partido pan-árabe Baath assumiu o governo em seguida a um golpe militar. O fim da legislação que dava poderes discricionários ao Executivo, entre eles os de censurar, confiscar, sequestrar, torturar e matar, era a principal exigência do movimento reformista. Nas primeiras semanas, os sírios foram para a rua não para clamar pela saída do ditador - diferentemente do que fizeram tunisinos, iemenitas, egípcios e líbios -, mas para pressionar Bashar a arejar o país e as instituições políticas, coibir a violência dos serviços de segurança, estabelecer garantias jurídicas e combater a corrupção em que o sistema está imerso. Em suma, a agenda característica da chamada primavera árabe, mas sem a deposição do chefe do governo. Mas, quando ele aceitou tardiamente revogar as leis de emergência, já havia corrido na Síria sangue demais para que os manifestantes, por sinal cada vez mais numerosos, se dessem por satisfeitos e voltassem para casa. A mudança de regime passou a ser a meta.A radicalização destacou o que até então estava em segundo plano nos protestos: a revolta contra a hegemonia alauíta, o ramo xiita a que pertencem a família Assad, a cúpula do governo, os comandantes militares e a vasta burocracia de Damasco. Sendo só 13% dos sírios, os alauítas impõem a sua vontade sobre a ampla maioria sunita, os cristãos e os curdos. No Iraque, por exemplo, era o contrário. Os minoritários sunitas oprimiam xiitas e curdos. A origem comum não faz prever que o Exército destitua Bashar como ocorreu no Egito com Hosni Mubarak.O problema é que a ditadura está perdendo o controle da situação - e Bashar parece propenso a seguir os passos do pai Hafez, lidando de forma implacável com os inimigos. Deera não se compara a Hama em matéria de matança, nem a Síria de 2011 é a mesma de 1982. Mas a escalada da repressão permite que se façam os piores prognósticos.