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Opinião|O divórcio

O Congresso rema contra a maré, surdo ao desejo das forças sociais

Atualização:

O presidente Michel Temer apresenta constrangedora aprovação, apenas 5% da população. Todavia, por meio de conchavos com deputados, da liberação de verbas para emendas parlamentares e da indicação de apaniguados para a administração federal, obtém maioria na Câmara dos Deputados. O balcão de negócios é explícito. Dessa forma impede a instauração de ação penal por crime grave de corrupção passiva.

Aí está um exemplo do divórcio existente entre a República e a sociedade, no atual momento. Muitos representantes de cada um dos três Poderes se encontram alheios aos anseios da população, como se as instituições do Estado e os grupos sociais fossem universos estanques, incomunicáveis.

A maioria das pessoas, diante das revelações de corrupção, reclama efetividade na apuração dos crimes perpetrados pelos agentes políticos, em prejuízo do dinheiro público. Fatos foram trazidos à tona pelas delações das grandes empreiteiras e da JBS, mas apenas pequeno porcentual das investigações prosperou.

Mesmo quando se instaura um processo criminal no Supremo Tribunal Federal, a demora é inaceitável, basta lembrar o recebimento da denúncia contra Renan Calheiros, por peculato, anos depois do fato envolvendo sua ex-amante Mônica Veloso. A denúncia foi recebida em dezembro do ano passado, mas o acórdão relativo a esse acolhimento só agora veio a ser posto à disposição pelo ministro relator, que o ficou burilando por oito meses. Enquanto isso, Renan Calheiros zomba da Justiça.

As principais lideranças políticas dos diversos partidos, em especial do PMDB e do PT, têm contra si vários inquéritos, cuja finalização, para a apresentação de denúncia, se vai prolongando no tempo. Enquanto isso, esses falsos líderes continuam a ditar a vida política brasileira, ocupando cargos de relevo na Câmara e no Senado. Se alguns políticos importantes como Lula, Palocci, Henrique Alves, Eduardo Cunha, Geddel Vieira Lima e Sérgio Cabral estão condenados, presos ou em prisão domiciliar, tal sucede apenas porque, sem mandato, não gozam de foro privilegiado. A morosidade é patente nos tribunais superiores.

A nossa proposta da criação de força-tarefa no Supremo Tribunal para enfrentar a avalanche de investigações decorrentes da delação da Odebrecht, agora, com a delação da JBS, torna-se ainda mais imperiosa. Medidas foram adotadas pela presidente Cármen Lúcia junto ao relator da Lava Jato no Supremo, ministro Edson Fachin, que pretende acelerar alguns processos. Mas é ainda pouco, perto da imensidão de fatos graves envolvendo a cúpula da política brasileira. E a sociedade, ansiosa, clama por justiça, que está adormecida.

A reforma política, tão almejada, foi desprezada por Michel Temer e pelo Legislativo. Com imensa desfaçatez, o deputado Vicente Cândido “corajosamente” propôs vergonhoso habeas corpus preventivo para a classe política, impedindo a eficácia da Justiça ao proibir, desde oito meses antes das eleições, a prisão de pretendentes a candidatos a qualquer cargo. A já chamada “emenda Lula” – da qual se teria desistido – seria convite, portanto, a que réus encontrassem um valhacouto na disputa eleitoral, transformada em reduto garantidor da impunidade. Nada mais avesso ao sentir do povo.

No instante em que as contas públicas não fecham, surge a proposta de criação de um Fundo Eleitoral Nacional, com dotação de mais de R$ 3 bilhões, para financiar os partidos reconhecidamente dominados pelos acusados de corrupção, tornando viável sua eleição como fuga da Justiça.

Ao se destinarem elevados valores para os partidos, de acordo com a composição das bancadas na Câmara dos Deputados, busca-se a manutenção dos atuais parlamentares, impedindo a renovação na política brasileira. De outra parte, pretende-se dar sigilo às pequenas doações, na direção contrária à exigência de transparência reveladora de quem doou para quem. Com doações de pessoas físicas devidamente identificadas, evita-se a fraude, fortalece-se a participação da população e a soma das pequenas quantias pode ser significativa.

O sistema eleitoral para deputado perdurará, provavelmente, mantendo-se o atual modelo proporcional. A lista fechada, pela qual se vota no partido, deixou de interessar às siglas hoje em desgraça. Pensou-se no Congresso no denominado “distritão”, pelo qual se elegem os candidatos mais votados, o que enfraquece os partidos e privilegia apenas os “famosos”. O sistema distrital, que seria o ideal, nem foi proposto. O Congresso rema contra a maré, surdo ao desejo das forças sociais.

Faltam dois meses para se votar qualquer mudança nas regras eleitorais que possam viger na eleição de outubro de 2018. O que fazer, se possível for tentar algo?

Para buscar diminuir a distância entre as instituições e a sociedade, caberia às entidades de classe e aos movimentos que pregam a moralização da política lutar ainda pela aprovação pela Câmara de duas emendas constitucionais já aprovadas no Senado: a instituidora da cláusula de barreira (visando a impedir a permanência de partidos de aluguel) e a proibitiva de coligações nas eleições legislativas (para se ter maior fidedignidade à escolha do eleitor). Outra urgente e necessária tarefa está em lutar contra o Fundo Eleitoral.

O preocupante, no entanto, é o desanimador divórcio entre sociedade e instituições, com o gravame da ausência de lideranças livres dos males incrustados na nossa prática política. A descrença já toma conta dos espíritos. A anomia é um risco real.

Apesar dos pesares, se há, todavia, de resistir, sendo urgente reivindicar a aprovação imediata dessas emendas constitucionais. Depois, devem tentar os órgãos de classe, sindicatos e movimentos sociais, se manter unidos para, olhando para frente, viabilizar, nas eleições, mudanças no quadro político do país. É o pouco que nos resta.

*Advogado, professor titular senior da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras, foi Ministro da Justiça