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O Estado e a proteção às crianças

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Por Claudia Costin
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"...futuros mundos. Belas! Tenho vontade de defendê-las das injustiças dos ditos maiores" Elisa Lucinda Li no Estado de 9 de julho o artigo do brilhante sociólogo Demétrio Magnoli sobre o papel do Estado na regulação de condutas (Pastor das almas, A2), em que havia uma crítica forte à minha atitude de recolhimento de livros didáticos para alunos do quarto ano, por conterem uma cena de empalamento de um índio. Pondera o articulista que há um processo bem estruturado de seleção de livros didáticos no País e que a imagem, de valor histórico, encontra-se presente em museu aberto à visitação inclusive de crianças. Acusa-me de me postar como missionária da virtude e afirma que o papel do Estado não é este: o de prescrever condutas ou, como ele afirma, "educar os educadores". Sinto contrariar o autor de uma das obras que mais apreciei nos últimos tempos, a História da Paz. Cabe, sim, ao poder público, com base na Constituição e nas leis que a regulamentam, proteger a criança e, como parte disso, garantir-lhe materiais apropriados à faixa etária. Estamos lidando, neste caso, com crianças de 9 anos. Infelizmente, algumas delas são expostas em seu cotidiano a cenas de violência parecidas, em algumas áreas da cidade do Rio de Janeiro que o narcotráfico ainda domina. O Ministério da Educação (MEC) tem um processo muito bem estruturado de escolha de livros escolares, selecionados inicialmente por professores universitários das diversas áreas e depois pela equipe escolar. No entanto, processos humanos podem ter falhas e para proteger a criança podem e devem ser corrigidos. Todo o cuidado é pouco, por parte dos gestores públicos, para lidar com mentes infantis, ainda mais quando sob os cuidados do Estado, em escolas públicas. Demétrio Magnoli argumenta que essa imagem de Theodor de Bry está exposta em museu. É verdade, e é muito bom para o Brasil ter essa gravura preservada e exposta. Mas quem conhece visitação de crianças a museus sabe que os monitores exploram obras diferentes com os pequenos, de acordo com a faixa etária. Além disso, obviamente, a criança não leva o quadro para casa. O poder público também interfere no estabelecimento de horários indicativos para diferentes idades, até para orientar os pais em sua decisão. Ora, o livro didático não apenas inclui a imagem, como é material que será explorado fora do ambiente escolar, sem a presença de alguém que o oriente. Temos aqui, no Rio de Janeiro, problemas graves na educação oferecida aos alunos de escolas públicas. As notas da Prova Brasil revelam níveis críticos de aprendizagem em Matemática e Português tanto no quinto como no nono ano, ambos de responsabilidade municipal. Um esforço vigoroso está sendo feito para melhorar o ensino: começamos o ano letivo com uma revisão de 45 dias de Português e Matemática, identificamos e estamos realfabetizando 28 mil analfabetos funcionais do quarto, quinto e sexto anos, estruturamos o reforço escolar para 200 mil alunos da rede e introduzimos provas bimestrais com base no currículo municipal e nos descritores de conhecimentos e competências preparados pelo MEC. Contratamos cerca de 1.800 professores concursados para diminuir o déficit desses profissionais. Capacitamos mais de 2 mil alfabetizadores para uma melhor prática, de forma a evitar a reprodução do analfabetismo funcional. Instituímos, para as equipes escolares, prêmios associados à melhoria da aprendizagem das crianças. Há escolas, no entanto, em que tudo isso é muito pouco. São 150 que estão em áreas controladas pelo narcotráfico, pelas milícias ou em favelas recém-pacificadas. Ficam na Cidade de Deus, na Maré, no Complexo do Alemão ou na Rocinha. Essas crianças já viram violência demais. Demandam um olhar mais carinhoso do poder público, que deve, neste caso, além de dar educação de qualidade, desfazer bloqueios cognitivos gerados pela violência, garantir mais tempo na escola e assegurar a permanência nos bancos escolares desses jovens, que podem acabar sendo recrutados para o crime. A evasão escolar, nessas áreas, passa de 5% no ensino fundamental, mais do dobro do que ocorre no restante da cidade. Para essas crianças estamos implantando, com a Unesco, o projeto Escolas do Amanhã, com educação em tempo integral, no conceito de bairro educador, um ensino de Ciências arrojado e inovador, metodologias de ensino voltadas para crianças expostas a um clima de constantes confrontos, com capacitação dos educadores para atuar nesse contexto. Cada escola conta com um educador comunitário que, além de ir atrás das crianças que faltam ou querem abandonar a escola, articula-se com o bairro na busca de atividades interessantes e saudáveis para os alunos, no contraturno. É fundamental que essas crianças tenham na escola uma referência diferente e um espaço de paz. Vivemos num mundo em que se acumulam falhas na proteção às crianças: pequenos pedem dinheiro de madrugada nas ruas, numa clara situação de exploração de trabalho infantil; segmentos da indústria da moda incentivam a anorexia e a desnutrição de meninas ainda na pré-adolescência; crianças são usadas como soldados em várias partes do planeta; e a exploração sexual de menores não foi considerada crime pelo Superior Tribunal de Justiça, em nosso país. Como gestora pública, não posso resolver todos esses problemas, tenho sobretudo a missão de assegurar educação pública de qualidade e, sim, oferecer capacitação aos educadores da rede pública. Mas não me peçam que deixe as crianças sob minha responsabilidade expostas a situações e imagens claramente inadequadas à sua idade! Claudia Costin, secretária de Educação do município do Rio de Janeiro, foi ministra da Administração Federal e Reforma do Estado e secretária de Cultura do Estado de São Paulo