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Opinião|O fundo do poço

Um eterno lamento acompanha o povo brasileiro ano após ano, década após década

Atualização:

Em meio ao tédio suscitado pelos intermináveis discursos parlamentares, algumas intervenções, tão raras quanto notáveis, escapam do esquecimento e entram para a História. Um dia no remoto ano de 1914 surgiu nas palavras de Rui Barbosa uma dessas raridades, sempre lembrada nos momentos de desânimo nacional com os políticos e as instituições. São momentos que, infelizmente, tendem a repetir-se, pois um eterno lamento acompanha o povo brasileiro ano após ano, década após década. Vítimas de amnésia histórica, todas as gerações – incluída a atual – julgam superar os recordes negativos anteriores.

Eis o que dizemos hoje: agora também já é demais, nunca se viu tanta roubalheira junta; depois de tanto tempo na beira do abismo, mergulhamos de vez no poço da corrupção e tocamos no fundo. Eis o que dizia Rui Barbosa, há pouco mais de um século: “De tanto ver triunfar as nulidades; de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça. De tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar-se da virtude, a rir-se da honra e a ter vergonha de ser honesto”.

A exatidão com que as palavras de Rui Barbosa parecem encaixar-se em todas as crises de desânimo, incluindo a atual, não se limita à frase citada. Veja-se a atualidade gritante deste outro trecho da mesma intervenção (Rui Barbosa, Discursos Parlamentares, Obras Completas, volume XLI, 1914, tomo III, páginas 86/87): “Nesse esboroamento da justiça, a mais grave de todas as ruínas é a falta de penalidade aos criminosos confessos, é a falta de punição quando se aponta um crime que envolve um nome poderoso, apontado, indicado, que todos conhecem...”

Como se numa inversão da ordem natural das coisas, com o passar do tempo as observações de Rui Barbosa, em vez de envelhecer, rejuvenescem. Mudam as circunstâncias, é bem verdade, a indignação de Rui tinha como alvo principal a República, que ele contrapunha à austeridade da monarquia. Na verdade, as coisas foram mais complicadas, como demonstra a própria trajetória de Rui Barbosa nos tempos tumultuados da transição entre os dois regimes.

Na tentativa de conservar a fidelidade vacilante dos militares, os últimos Gabinetes do Império distribuíram títulos de nobreza a rodo. Era a moeda da propina da época. O Gabinete João Alfredo concedeu 129 títulos (84 de barão, 33 de visconde, 7 de conde e 5 de marquês). Ouro Preto, em apenas cinco meses, concedeu 93 títulos (83 de barão, 9 de visconde e 1 de conde).

Proclamada a República, os militares reagiram de maneira ainda mais singular. Por decreto de 25 de maio de 1890, assinado por Deodoro e referendado por Floriano, todos os civis do Gabinete foram transformados em generais de brigada do Exército nacional. Destino singular coube ao “general” Rui Barbosa, que, por ter seu nome envolvido numa tentativa de golpe, foi cassado do generalato por outro decreto de Floriano, em novembro de 1893; já o “general” Glicério incorporou definitivamente o título militar.

Essas peripécias, que hoje nos parecem mais pitorescas do que graves, soam minúsculas se comparadas ao primeiro grande escândalo financeiro da República. Conhecido como o Encilhamento, recinto onde os apostadores das corridas de cavalos se reuniam antes dos páreos para avaliar suas chances, o apelido prestava-se como uma luva ao ambiente de jogatina que tomava conta do País, na ânsia de acelerar o desenvolvimento por meio de duas fórmulas mágicas: a garantia de juros e a licença para novos bancos emissores.

O romance à clef publicado pelo visconde de Taunay O Encilhamento dá uma boa ideia do ambiente: “O governo, com a faca e o queijo na mão, promulgava decretos sobre decretos, expedia avisos e mais avisos, concessões de todas as espécies, garantias de juros, subvenções privilégios, favores sem fim, sem conta, sem nexo, sem plano.

Pululavam os bancos de emissão e quase diariamente se viam na circulação monetária notas de todos os tipos, algumas novinhas, faceiras artísticas, com figuras de bonitas mulheres e símbolos elegantes, outras sarapintadas às pressas, emplastradas de largos e nojentos borrões”.

Os admiradores de Rui Barbosa talvez se desapontem ao saber que esse sistema de liberalidade excessiva foi posto em prática pelo primeiro ministro da Fazenda da República, que não era outro senão o próprio Rui Barbosa. Monarquista histórico, Rui se convertera, como tantos outros, e assumiu as finanças brasileiras até o início de 1891.

Desde então, as crises econômicas e políticas se sucederam com melancólica regularidade. Algumas nada tiveram que ver com os governos do momento. Exemplo maior é a de 1918, ou crise dos quatro gês, quando a gripe espanhola, guerras e geadas se uniram à invasão de gafanhotos; ou a de 1929, quando o crack da bolsa de Nova York fez o preço da saca de café despencar de 200 ml réis em agosto de 1929 para 21 mil em janeiro de 1930, depois do crash.

Como consolo, vale lembrar que, mesmo nas crises – e são muitas – em que não se podem culpar fatores externos e o mundo político parece um deserto de homens e ideias, há sempre brilhantes exceções. Julgados às vezes por muitos de seus pares como alguém que “não bate bem”, entram para a galeria dos políticos que mais sobressaem quanto maior for a mediocridade do momento.

Vale reler a carta assinada no tempo de dom João VI pelo encarregado de negócios francês J. B. Maler sobre dom Fernando de Portugal, conde de Aguiar, no dia seguinte ao seu falecimento. “Depois de ter sido governador-geral em São Salvador e vice-rei no Rio durante treze anos, e primeiro-ministro nove anos, Aguiar morre sem legar uma choupana à viúva; sem deixar sequer uma mobília decente. Sei positivamente que não se achou em sua casa dinheiro suficiente para o custeio do funeral.

Tanta virtude, tamanho desprendimento seria formosíssimo em qualquer país, mas no Brasil, monsenhor, é admirável, é incrível”.

*Jornalista e escritor

Opinião por Pedro Cavalcanti