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Opinião|O habeas corpus de Lula e a encruzilhada do Brasil

Hoje saberemos se estamos avançando na luta contra a corrupção e a impunidade, ou não

Atualização:

À frente do suntuoso prédio do STF destaca-se uma grande escultura em granito do artista plástico Alfredo Ceschiatti que representa Têmis, a deusa da Justiça, com os olhos vendados e uma balança, que ali se encontra desde a fundação de Brasília. Na mitologia grega, Têmis era a esposa de Zeus, o deus dos deuses, e sua importante conselheira. A venda que lhe cobre os olhos simboliza o mais importante dos compromissos de um julgador, o da imparcialidade. Justiça cega porque ela não pode olhar para quem está julgando, para ser igual com todos, observando o mesmo critério sempre.

A balança, como se pode intuir mais facilmente, relaciona-se à ideia de saber pesar, sopesar, ponderar os dois lados e decidir com senso de justiça, equidade, equilíbrio, bom senso.

Atrás da figura de Têmis, dentro do prédio do STF está em jogo, no habeas corpus impetrado pelo ex-presidente Lula que será julgado hoje pelos 11 ministros, muito mais que o desfecho de um simples processo judicial, muito mais que a liberdade de um homem. Está em julgamento o grau de maturidade das nossas instituições democráticas. Saberemos ao final desse julgamento se estamos avançando na luta contra a corrupção e contra a impunidade no Brasil, ou não.

Sempre é bom recordar que desde 2016 se fixou entendimento no plenário do STF, por 7 x 4, tendo como relator o saudoso ministro Teori Zavascki, que a partir da condenação por tribunal (segundo grau) a pena pode e deve ser cumprida, já que se teria esgotado o exame dos fatos e das provas. Decidiu-se ali que não se deveria esperar o trânsito em julgado no quarto grau (STF) para a aplicação da pena. Essa foi uma das mais importantes decisões da história da Justiça do Brasil.

Democracias modernas como a França e os EUA mandam criminosos para a prisão após a sentença de primeiro grau. Nem esperam o resultado de eventual recurso ao tribunal.

O resultado de tal decisão do STF em 2016 foi extraordinariamente edificante no que diz respeito ao resgate da credibilidade da Justiça perante o povo, que, talvez pela primeira vez, sentiu que ela passou a alcançar poderosos. Além disso, e especialmente a partir desse precedente, aumentou substancialmente o número de colaborações premiadas, que permitiram a responsabilização de um número absolutamente inacreditável de detentores do poder político e econômico.

Só não se conseguiu ir mais além por causa do obstáculo do foro privilegiado – um escudo de proteção para as velhas raposas da política, uma verdadeira muralha que utilizam para se blindar da Justiça, já que são tantos os casos hoje que o STF não tem condições de dar conta da demanda. Além disso, não foi concebido para colher provas, mas para ser guardião da cidadania, julgando recursos extraordinários e ações diretas de inconstitucionalidade de leis.

O protagonista é o ex-presidente Lula, condenado a 12 anos e um mês de reclusão. Sua punição foi decidida em primeiro grau e confirmada em segundo. Nos termos do precedente de 2016 – chamamos isso de jurisprudência, uma das fontes do Direito –, ele deve ser preso como qualquer um. Não é melhor nem pior que ninguém. O fato de ter sido presidente da República não deve interferir na decisão.

Mas Lula impetrou um habeas corpus, que é um remédio jurídico extraordinário voltado para a proteção da liberdade quando esta é desrespeitada ou ameaçada. Ele não aceita ser preso após confirmação pelo tribunal. Quer que se esgote o exame de todos os possíveis e imagináveis recursos.

Mesmo estando inelegível à luz do texto da Lei da Ficha Limpa, oriunda de projeto de iniciativa popular, que ele sancionou quando era presidente, faz “caravanas” pelo País dizendo não serem atos de campanha. Sabe que ao final sua candidatura será barrada pela Justiça Eleitoral, mas insiste – houve até declaração sintomática da presidente de seu partido de que para prender Lula seria necessário morrer gente, em claro sinal de desapreço às regras do Estado de Direito e ao império da lei.

Ao impetrar esse habeas corpus, Lula parece querer buscar tratamento especial, por ter sido ex-presidente talvez. Não aceita submeter-se ao preceito geral e tudo indica que espera que seu histórico social sofrido e sua condição de líder político sustentem tal posição.

Se isso interferir, estará arrancada a venda dos olhos de Têmis e quebrada a lógica do sistema, pois sem imparcialidade não existe justiça. Sem esquecer que, dos 11 ministros julgadores, três deles foram nomeados pelo próprio Lula. Mesmo sabendo que a posse lhes confere independência para decidir, até que ponto poderiam ser considerados imparciais para julgar especificamente o próprio nomeante? Não haveria uma dívida de gratidão?

É imprescindível ter a clareza de que, além de Lula, está em jogo o futuro da nossa Justiça. Se for concedido o habeas corpus, imediatamente criminosos condenados e presos entrarão com pedidos idênticos, invocando o precedente Lula, e o Supremo Tribunal não poderá indeferi-los. Não poderá ter dois pesos e duas medidas.

A ciência política, ao examinar o tema do combate à corrupção, pressupõe a punição de figuras expressivas como estratégia vital para o êxito na jornada – “fritar os peixes grandes”, como aponta Robert Klitgaard. A tripartição do poder de Montesquieu parte da premissa do Judiciário imparcial para o controle do Executivo e do Legislativo.

Nesta perigosa encruzilhada, o abandono do precedente de 2016 para satisfazer a sanha política de um ex-presidente candidato significaria conduzir-nos a um precipício, jogando nosso sofrido povo num fosso de total desesperança e nosso sistema jurídico em campo de areia movediça. E aplicaria um gigantesco ponto de interrogação sobre nosso futuro.

* ROBERTO LIVIANU É DOUTOR EM DIREITO PELA USP, PROMOTOR DE JUSTIÇA EM SÃO PAULO; IDEALIZADOR E PRESIDENTE DO INSTITUTO ‘NÃO ACEITO CORRUPÇÃO’