
17 de outubro de 2015 | 02h55
Ao exigir conhecimentos detalhados de linguagens, ciências da natureza, humanas, matemática e redação, o Enem coloca uma camisa de força em todo o ensino médio, com graves prejuízos tanto para os que vão para o ensino superior privado ou estadual, e não dependem desse exame, quanto para os que nunca entrarão numa universidade. Em 2013 havia cerca de 5 milhões de vagas no ensino superior, 4,5 milhões delas no setor privado e somente 321 mil nas federais. Em 2015, dos 22 milhões de jovens entre 18 e 24 anos de idade, 15 milhões já não estavam estudando e, destes, cerca da metade não havia concluído o ensino médio.
Não haveria problema se, para os que nunca entrarão numa universidade federal, o ensino médio, pautado pelo Enem, estivesse contribuindo para melhorar a formação dos estudantes. Mas não é o que acontece. A qualidade do ensino médio brasileiro é muito ruim e não tem melhorado, apesar de custar hoje três vezes mais do que custava, por estudante, dez anos atrás (o que fizeram com o dinheiro?). Existem muitas razões para isso, a começar pela má formação que os alunos trazem da educação fundamental. Mas o problema é agravado pelo currículo pesado, com cerca de 15 matérias obrigatórias, todas dadas superficialmente e pelas quais a grande maioria dos alunos não se interessa, nem consegue acompanhá-las. Muitos abandonam antes de terminar, outros terminam sem aprender nada. E mesmo os poucos que conseguem uma vaga numa universidade federal esquecem rapidamente quase tudo o que tiveram que decorar para passar no Enem.
É preciso mudar isso. No ensino médio, em todo o mundo, aos 15 anos de idade os jovens orientam-se para as áreas de estudo a que se vão dedicar, conforme seus interesse e desempenho. A maioria prepara-se para a vida profissional e só uma minoria vai para os cursos universitários tradicionais. Assim deveria ser no Brasil.
Em vez de ter aulas sobre tudo e não se aprender quase nada, como hoje, deveria haver um núcleo comum de formação geral, com ênfase no uso da língua e do raciocínio matemático, que não ocupasse mais que metade das 2.400 horas requeridas ao longo de três anos, com a outra metade dedicada a uma área eletiva de formação e aprofundamento (ciências físicas, biológicas, ciências sociais, humanidades), que preparasse para estudos mais avançados, ou uma área de formação técnica e profissional que desse uma qualificação para o mercado de trabalho – e também acesso a um curso superior especializado.
O ensino médio deve ser uma etapa de formação e qualificação, geral e profissional, e não um longo cursinho de preparação para uma universidade na qual poucos entrarão.
O Enem, no seu formato atual, tenta servir de padrão de qualidade para o ensino médio e funcionar como um grande vestibular unificado para as universidades, mas não consegue fazer bem nenhuma das duas coisas. Ele precisa ser modificado, com ênfase na primeira função e tomando em conta a necessidade de diversificar o ensino médio. Em lugar de uma prova única, deveria haver uma avaliação de competências gerais de uso de linguagem e raciocínio matemático para todos e avaliações diferentes, opcionais, para as diferentes áreas de formação e aprofundamento. Para o ensino técnico de nível médio é necessário desenvolver um sistema de certificações para as diversas áreas profissionais de formação. Em vez de uma maratona nacional, como hoje, os exames poderiam ser dados em diferentes momentos e locais, fazendo uso de técnicas computadorizadas como as adotadas pelo Aptitude Test ou Scholastic Assessment Test (SAT) e por provas semelhantes nos EUA.
A ideia de transformar o Enem num exame vestibular unificado era tornar o acesso ao ensino superior mais democrático. E, de fato, o sistema permite que estudantes de qualquer cidade possam candidatar-se a uma vaga em qualquer universidade federal do País. Mas ao criar um grande funil, criou uma situação mais elitista do que antes: as instituições regionais perdem vagas para alunos vindo de regiões mais ricas, as notas de corte são cada vez mais altas e as universidades perdem a possibilidade de selecionar alunos mais adequados a seus projetos pedagógicos e profissionais. A separação entre alunos cotistas e não cotistas também não ajuda, porque o funil se repete dentro de cada grupo (em 2013 havia 27 candidatos por vaga entre os cotistas e 26 candidatos por vaga entre os demais).
A pontuação das notas do Enem, em centésimos, só serve para classificar os alunos para as universidades. O correto seria fazer uso de conceitos amplos, como os de A a D ou de excelente a insuficiente. Os alunos poderiam usar os conceitos em seus currículos e as universidades, requerer níveis mínimos de desempenho em áreas específicas para selecionar seus alunos, em combinação com critérios próprios.
Não será fácil passar do atual sistema para outro como sugerido aqui. A Base Nacional Comum Curricular, que está sendo discutida, precisa adequar-se a um ensino médio diversificado. As escolas precisarão adaptar-se, haverá necessidade de realocar professores e formá-los para novas práticas. E há muitíssimo que aprender para criar um sistema amplo de educação técnica e profissional de nível médio com as respectivas certificações profissionais. Mas é necessário começar, lembrando que, considerando a péssima situação em que nos encontramos, não há nada a perder.
* SIMON SCHWARTZMAN É PESQUISADOR DO INSTITUTO DE ESTUDOS DO TRABALHO E SOCIEDADE. E-MAIL: SIMON@IETS.ORG.B
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