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O Irã não é Ahmadinejad

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Por Roberto Abdenur
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Não poderia ser mais inoportuna uma visita do presidente iraniano. Diante de críticas à visita, porta-vozes do governo afirmam que as ações de política externa não são tomadas em função das opiniões de terceiros países. É inegável que certos passos em política exterior precisem por vezes ser dados à revelia das sensibilidades de outros governos. Ou que medidas sejam ocasionalmente tomadas mesmo ao preço de aberta confrontação com outras partes. No dia a dia das relações internacionais, contudo, tanto o esclarecido bom senso quanto a crua Realpolitik sugerem que se leve na devida conta o contexto mais amplo em que se insere determinada questão - ou, no caso, as circunstâncias, tanto domésticas quanto externas, que envolvem governo em acesa confrontação com amplos setores da comunidade internacional. E, na mesma linha, que se tenham em mente os custos - políticos, econômicos ou de imagem e credibilidade - decorrentes de uma determinada iniciativa. O Irã defronta momento decisivo. Em eleições presidenciais já em junho, escolherá entre via moderadamente reformista, que não questione um certo conservadorismo religioso inerente ao regime, mas que mostre mais pragmatismo, liberalidade e comedimento, inclusive no plano internacional; ou, com a reeleição de Mahmoud Ahmadinejad, trilha capaz de culminar numa grave confrontação externa. Algumas das atitudes tomadas por Teerã suscitam fundadas desconfianças no seio da comunidade internacional. O regime iraniano ocultou da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA) atividades nucleares em áreas sensíveis durante quase duas décadas, em violação de seus compromissos com o Tratado de Não-Proliferação. Isso levou o Conselho de Segurança da ONU - onde desejamos obter assento permanente - a aplicar sanções econômicas contra Teerã. As tensões no plano externo foram potencializadas pelo discurso agressivo de Ahmadinejad, com sua negação do Holocausto, seu virulento antissemitismo e a pregação da necessidade de eliminação de Israel. Não pode o Brasil, naturalmente, dar-se ao luxo de só convidar dirigentes estrangeiros que tenham posições próximas das nossas. Política externa é um esforço permanente de superação de diferenças e encurtamento de distâncias. Outra coisa, porém, é convidar personagem que suscita opróbrio no plano internacional e cujas posturas estão em total contradição com os valores e desideratos apoiados pelo Brasil na busca da paz e estabilidade no Oriente Médio. Não se pode ignorar que Ahmadinejad representa vertente radical da revolução iraniana, apegada a rígida visão religiosa. Uma vertente ainda poderosa, mas crescentemente desgastada pelas dificuldades econômicas (causadas sobretudo pelo populismo de Ahmadinejad) e pelos riscos de continuada confrontação externa. Trazer Ahmadinejad a Brasília a apenas algumas semanas de eleições presidenciais não seria, claramente, mostra de sabedoria em termos de oportunidade política. O Brasil deve levar adiante as relações com o Irã, mas a sabendas de que as incertezas do quadro interno e as dificuldades no relacionamento externo do País desaconselham exageros ou precipitações. Cumpre ter em mente a extrema gravidade da situação no Oriente Médio. Mais do que nunca, estão lá em jogo questões existenciais - literalmente, questões de vida ou morte para palestinos, israelenses, iraquianos, libaneses, sírios, egípcios e jordanianos; e, mais além, para afegãos e paquistaneses. Da mesma maneira, está em jogo o destino da nação iraniana. E estão em jogo, no mesmo tabuleiro, vitais interesses da Europa, da Rússia, da China e dos EUA. Não quer isso dizer que o Brasil deva abster-se de maior interação com a região. Fazemos bem em estimular mais contato entre árabes e sul-americanos, em procurarmos nos posicionar como coadjuvantes nos processos de paz entre Israel e palestinos ou em negociar acordos comerciais com Israel e os países do Golfo. Mas buscar aproximação com o Irã na pessoa de Ahmadinejad nos acarretará constrangimentos e críticas. O lado brasileiro precisa, por isso mesmo, mostrar-se contido e cuidadoso, evitando manifestações efusivas de congraçamento. E cuidando, em particular, de evitar a contaminação de nosso programa nuclear pela imagem de inconfiabilidade que continua a suscitar o programa iraniano. A AIEA, em relatório publicado recentemente, deixa claro haver ainda razões para suspeita quanto às intenções das atividades nucleares iranianas. Subsistem em setores do establishment político e acadêmico nos EUA e alhures desconfianças e sentimentos antagônicos ao programa nuclear brasileiro. Brasil e Irã são os dois novos países a desenvolver mais recentemente atividades de enriquecimento de urânio, o que aos olhos de observadores por vezes imbuídos de má-fé se presta a descabidos paralelismos entre os objetivos dos dois programas. O Brasil - em boa medida graças a sua diplomacia ao longo do tempo - situa-se em contexto geopolítico privilegiadamente tranquilo, como é a América Latina, e está comprometido com o uso estritamente pacífico da energia nuclear por força de dispositivo constitucional e de diversos acordos internacionais - entre os quais, ademais dos Tratados de Tlatelolco e de Não-Proliferação, a Agência Brasileiro-Argentina de Contabilidade e Controle de Materiais Nucleares (ABACC). Não tem cabimento, portanto, qualquer analogia entre os dois programas. A diplomacia brasileira teria feito bem em perceber que o Irã não é necessariamente Ahmadinejad. Deve ela agora tomar os devidos cuidados para que terceiros não cometam o equívoco de nos identificar com o Irã por enquanto representado por Ahmadinejad. Roberto Abdenur, diplomata, foi embaixador do Brasil nos Estados Unidos