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O mundo invertido

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Por Denis Lerrer Rosenfield
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É propriamente escandaloso o que está acontecendo com os precatórios no País. Parece que a vergonha e o pudor abandonaram definitivamente a cena estatal e partidária brasileira. Nada mais faz sentido do ponto de vista do cidadão e tudo parece fazer sentido na perspectiva de parlamentares e governantes que se afastaram do bem público. Os cidadãos estão desprotegidos, à mercê de governantes sem escrúpulos, enquanto estes utilizam os recursos alheios como se fossem seus. Usam os bens dos outros e ainda apresentam discursos que se pretendem "corretos". É correto tomar para si bens que não lhes pertencem? Precatórios são direitos dos cidadãos, resultado de dívidas contraídas pelo Estado por razões alimentares, correções de planos econômicos e desapropriações, que se transformaram em títulos. Na verdade, deveriam ser ativos, bens das pessoas, que seriam honrados pelos devedores. Ora, o que acontece? Os devedores, sobretudo governadores e prefeitos, simplesmente não pagam e ainda alguns pretendem que nada têm que ver com isso, como se a dívida de governantes e prefeitos anteriores não fosse deles. Se nada entendem do Estado, jamais deveriam ter-se candidatado. Alguns ainda pagam quantias mínimas como se estivessem fazendo um grande favor, quando, na verdade, cumprem apenas uma parte mínima de suas obrigações. A afronta ao Estado de Direito é total. A Justiça, fazendo "justiça", manda pagar e os governantes, fazendo "injustiça", simplesmente não pagam. Deixando de pagar, contraíram uma dívida enorme, que agora dizem impagável, na perspectiva das finanças públicas. É um escárnio. Isso é equivalente a um particular que aumenta sua dívida sem nenhum limite e depois diz que não pode simplesmente pagar. Como se chama isso? Roubo? Fraude? Atitude criminosa? E se os governantes assumem essa posição, são o quê? O Senado, em completo desrespeito à dignidade do cidadão, aprovou a PEC 12, que definitivamente instaura o calote, ao arrepio de decisões judiciais. Sai em socorro de prefeitos e governadores que pretendem institucionalizar o confisco. O que fizeram é muito pior do que a atual farra das passagens. Da moralidade não tiveram nem a menor lembrança. À justiça disseram adeus, sem sentir saudades. Todos os partidos comungaram nesta falta de dignidade. Entre outras gracinhas contidas nessa PEC, encontra-se uma que é digna de um breviário da crueldade. Ela institui o leilão pelo menor preço do bem de um particular. Precatório é um título, deveria ser um ativo, que dá ao seu detentor o direito de cobrar - e receber - determinada quantia de um governo ou de uma prefeitura. É uma espécie de propriedade sua. Digamos que ele tenha direito a R$ 100 mil. Este é o seu bem. Ele entraria num leilão para receber menos que isso, competindo com outros, igualmente necessitados, que fariam lances menores. Seria a corrida, cruel, por uma maior destituição dos seus bens. Imaginem a situação: o lance começaria por 80% de seu valor para chegar, segundo as estimativas, a 30%. Ou seja, é como se voluntariamente - na verdade, obrigatoriamente - uma pessoa se dispusesse a jogar pela janela 70% do seu patrimônio, tendo como retorno uma migalha. O governante fica todo contente com o pão! É como se tivesse pago a sua dívida. Será que não fica com vergonha? Ainda pode achar que fez um mau negócio, pois poderia ter chegado a 20% ou, quem sabe, 10%! Quanto menos migalhas, melhor. Os cidadãos devem aprender! Alguns governadores e prefeitos querem ainda mascarar o que fazem, como se as pessoas fossem descerebradas, dizendo que não concordam com os índices de correção das dívidas, que atingem quantias enormes. Será que deveriam ser lembrados de que as dívidas dos cidadãos com o Fisco, federal, estadual ou municipal, são corrigidas por índices maiores, acrescidas de multas astronômicas? O que vale para um não vale para o outro. Sejam pelo menos coerentes. Proponham que o índice de correção das dívidas com o Fisco seja o mesmo utilizado na correção dos precatórios. Fariam, por uma vez, justiça. Outra pérola de "argumento", se é que esta palavra possa ser usada para a falta de raciocínio, consiste em dizer que a saúde será desprotegida se os precatórios forem pagos. O Estado confisca o dinheiro de particulares e diz querer o bem deles. Tomemos o seguinte exemplo. Não é imaginação minha, mas relato de leitores. Uma pessoa, acima de 70 anos, acometida de câncer, espera por um precatório para o seu tratamento. Não tem recursos para arcar com os custos daí decorrentes. O dinheiro não vem. Está cada vez mais angustiada e o medo da morte se potencializa. Como deve sentir-se essa pessoa quando lê um artigo ou ouve uma declaração de que o seu precatório não será pago porque o governo está preocupado com a "saúde"? A repulsa por tais atitudes deve ser a mais natural das suas reações. A PEC do Calote, do confisco e da falta de vergonha encontra-se na Câmara. Resta uma esperança de que os deputados resgatem a dignidade da política e dos seus mandatos. Resta uma esperança de que acordem, embora o seu torpor pareça ter-se tornado o seu modo natural de ser. Os quatro grandes partidos foram, até agora, se não omissos, cúmplices desta situação. Os democratas, cuja doutrina prega a defesa do cidadão contra o arbítrio do Estado, colocaram-se do lado do arbítrio. Os petistas, que dizem defender os trabalhadores e os cidadãos, colocaram-se do lado da opressão destes, como se não tivessem direitos. Os tucanos, que se gabam de suas gestões, justificam usar os bens e os recursos alheios como se fossem seus. E os peemedebistas nem sabem mais o que significa ser cidadão, perdidos que estão na busca de cargos e benesses. Quem é que vai defender os cidadãos? Denis Lerrer Rosenfield é professor de Filosofia na UFRGS. E-mail: denisrosenfield@terra.com.br