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O perigo do direito autoritário

Tem gente com poder sobre a operação Lava Jato que, sob o argumento de punir todo e qualquer ato de corrupção, deseja inverter a mais elementar lógica jurídica

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Por Redação
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Mais de uma vez foi aventado o perigo de um esvaziamento da Lava Jato, em razão de ela investigar poderosos do mundo econômico e político. Como é evidente, muitos almejariam que a operação fosse mais branda, sem investigar a fundo os variados casos de corrupção que são denunciados. Esse, no entanto, não é o único perigo que corre a Lava Jato. Tem gente com poder sobre a operação que, sob o argumento de punir todo e qualquer ato de corrupção, deseja inverter a mais elementar lógica jurídica, pondo em risco o trabalho de toda a operação e, assim fazendo, consagrar no Brasil o direito autoritário, próprio das tiranias. Nas ditaduras, o acusado é sempre e necessariamente culpado, restando ao juiz fixar-lhe a sentença. É preciso, mais do que nunca, equilíbrio – não para pactuar com malfeitos, mas para respeitar integralmente o Direito.

O perigo do desequilíbrio ficou evidente na recente entrevista ao Estado do procurador da República Deltan Dallagnol. Para o coordenador da força-tarefa da Lava Jato, na aplicação da lei penal consolidou-se uma interpretação excessivamente benéfica ao réu, que só olharia os direitos do acusado, e não os da sociedade. “O que se desenvolveu no Brasil foi aquilo que alguns chamam de hipergarantismo. É um garantismo hiperbólico, porque exacerbado, e monocular, porque só olha os direitos do réu, e não olha o direito da sociedade”, disse Dallagnol. Começando com essa esquisita disjuntiva – como se os direitos do réu não fossem também os direitos da sociedade –, o coordenador da Lava Jato busca justificar uma relativização do direito de defesa. Para ele, há no País uma “exacerbação do direito de defesa”, sem se dar conta de que os direitos são assegurados em lei e que o âmbito para sua discussão é o Legislativo.

O procurador Dallagnol não oculta o que sente pelo Congresso. Por ocasião da tramitação das Dez Medidas Anticorrupção na Câmara, ele deixou claro que não aceitaria de bom grado alterações em suas propostas. Sua reação às emendas parlamentares ficou perto de equivaler a uma acusação de conivência com a corrupção contra quem não apoiava integralmente o texto apresentado, que continha inegáveis abusos.

Como mostrou o repórter Luiz Maklouf Carvalho, as ideias do sr. Dallagnol sobre o processo penal não são de agora e foram defendidas no livro As lógicas das provas no processo – Prova direta, indícios e presunções, resultado de uma pós-graduação nos Estados Unidos. Publicada em 2015, a obra contém sofismas com forte relevância pública. “Conquanto o homem seja em regra inocente, não é igualmente forte a generalização indutiva segundo a qual os formalmente acusados em processos penais são em geral inocentes”, afirma o procurador. Ou seja, para o autor, a existência de processo penal contra uma pessoa seria elemento suficiente para alterar o juízo sobre sua inocência. Ora, é justamente esse tipo de raciocínio que o princípio da presunção de inocência – reconhecido por toda a legislação do mundo civilizado – vem combater. É garantia fundamental, necessária para que um país possa ser considerado como Estado Democrático de Direito, a exigência de uma sentença para condenar um réu. Antes disso, toda pessoa é necessariamente inocente, por mais que haja denúncias contra ela.

O pior é que, para o coordenador da força-tarefa da Lava Jato, não bastaria uma relativização do princípio da presunção de inocência. No livro citado, o sr. Dallagnol critica o entendimento de que, para condenar uma pessoa num processo penal, o juiz precisa ter certeza de sua culpabilidade. Para o procurador, a existência da prova “para além de uma dúvida razoável” seria suficiente para condenar o réu. Afirma, assim, que seria possível e até desejável – para um combate mais efetivo contra a corrupção – condenar uma pessoa mesmo que paire alguma dúvida se de fato ela cometeu o crime do qual é acusada. Tem-se, assim, uma completa inversão do princípio in dubio pro reo, que ainda por cima é apresentada como se fosse um benefício para a sociedade.

A Lava Jato tem um importante papel a ser feito em defesa da lei e do Direito para que seja contaminada por esse tipo de mentalidade.