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O primeiro inverno do governo Dilma

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Por Pedro S. Malan
4 min de leitura

"Quando quarenta invernos assediarem teu semblante" é a abertura de um dos mais belos sonetos de Shakespeare. À época, 40 anos era uma idade respeitável, a beleza era peregrina e, não mais que de repente, a força e o espírito da juventude se haviam esvaído. Hoje, chegar aos 80 invernos não é a raridade excepcional de antanho. Muitos - e muitas - o fazem. Mas chegar aos 80 mantendo extrema lucidez no infindável diálogo entre passado e futuro (seu próprio, do seu país e do mundo) é raro, muito raro. Quando, além disso, se chega aos 80 com invejável sentido de humor, marcante presença na vida política e no debate de temas de interesse público, é quase um desaforo.Pois bem, é o que sempre fez, e faz hoje, nessa idade, o presidente Fernando Henrique Cardoso, com quem tive o privilégio e o prazer de trabalhar na última década de meus quase 40 invernos de serviço publico. A amizade, que já existia, só fez se consolidar desde então. Espero que, quando o Brasil puder alcançar um mínimo de perspectiva histórica sobre nosso passado recente, se possa fazer justiça a Fernando Henrique Cardoso - à sua pessoa e a seu governo. Que venham os 90 invernos. Afinal, como escreveu Chaucer, "tão curta a vida, tão longo o ofício de aprender".O texto acima, com o título Oitenta invernos: homenagem a FHC, deve estar disponível nos próximos dias num site que recolheu contribuições de dezenas de amigos e antigos colaboradores do ex-presidente, parte das comemorações de seu aniversário, no dia 18 agora.Por que utilizá-lo aqui? A primeira razão (e a menos importante) é que há exatos oito anos comecei a escrever neste generoso espaço. E meu primeiro artigo (Falsos dilemas, difíceis escolhas) abria com a seguinte frase (em junho de 2003): "Nos últimos 12 meses, o Brasil mostrou ao mundo que continua avançando em termos de maturidade política e nível do debate econômico - apesar das aparências em contrário". O governo Lula - à época em que isso foi escrito - tinha exatamente a mesma idade do governo Dilma Rousseff, que chega agora a seu primeiro e turbulento inverno. Com problemas domésticos não triviais à frente, tanto na área política quanto na área econômica - e as águas de ambas não correm sempre em leitos distintos, como muitos parecem pensar. E não é demais lembrar que a atual presidente não contará com o contexto internacional tão extraordinariamente favorável que tanto beneficiou o País e o governo anterior de fins de 2002 a fins de 2008 - fato jamais reconhecido por Lula.A segunda razão é que vivi de modo intenso, ou acompanhei com enorme interesse, várias transições de governo: de Itamar Franco para FHC, deste para Lula e de Lula para Dilma. E, por que não dizer, de FH 1 para FH 2 e de Lula 1 para Lula 2. Ao cabo de todos esses subperíodos, isto é, em todos os junhos (de 1995, de 1999, de 2003, de 2007 e agora de 2011), eu poderia ter parafraseado a abertura do artigo de 2003: "Nos últimos 12 meses, o Brasil mostrou ao mundo que...". Achava, como acho, que o Brasil tem um lado moderno que, "apesar das aparências em contrário", está, ainda que muito gradualmente, prevalecendo sobre nosso lado anacrônico - que não pode e não deve ser subestimado.Esse mesmo artigo de 2003 terminava com a seguinte observação: "Não estamos começando do zero um processo de criação das bases para um sustentado crescimento com mudança estrutural e aumento de produtividade. Esse processo já vem ocorrendo há muitos anos e é importante que lhe seja dada continuidade. O mesmo se aplica ao desenvolvimento social. Em outras palavras, o que é legítimo e razoável esperar do governo Lula é que possa entregar a seu sucessor um País melhor do que aquele que recebeu. Como fez o governo FHC".Como fizeram governos anteriores. Como fez Lula (ainda que se achando uma espécie de "inventor do Brasil"). Como esperamos que faça Dilma Rousseff, ainda que com o semblante de seu governo assediado pelos quatro invernos que terá de enfrentar, em condições políticas e econômicas muito menos favoráveis que as de seu antecessor. Palocci lhe fará falta.Um estrangeiro, olhando o tamanho da base de sustentação política do atual governo no Congresso Nacional, poderia achar que os mais de 70% de apoio ao governo permitiriam ao Executivo um navegar tranquilo pelas águas da política, assegurando a governabilidade e a harmonia com o Legislativo. Mas, como notou Bobbio "nos países não apenas capazes de formar um governo, mas de efetivamente governar, existe uma relação entre grupos e programas em torno de certas questões de fundo... (Mas) num sistema de partidos complicados, onde por governabilidade se entende até a difícil operação de formar um governo, não se fazem alianças com base em opções de fundo... (Mas através de processos) que por vezes tornam impossíveis as opções de fundo".A presidente Dilma Rousseff sabe disso, e citou mestre Rosa em seu discurso de posse: "... a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem". Ninguém duvida que a nossa presidente tenha coragem. Assim como tem gana, garra e determinação. Mas o exercício do cargo, num país complexo como o nosso, uma democracia de massas, um sistema político precário e a voracidade infinda das varias facções de seus correligionários e de suas bases políticas, exige muito mais do que a sempre necessária coragem.O Brasil é um país admirável, mas complexo de entender e difícil de administrar, política e economicamente, como cedo descobre quem se propõe a fazê-lo. Assim como Lula, Dilma dá a impressão de que chega ao seu primeiro inverno como presidente com a percepção de que nada é fácil - e tudo é mais duro do que antes parecia.ECONOMISTA, FOI MINISTRO DA FAZENDA NO GOVERNO FHC E-MAIL: MALAN@ESTADAO.COM.BR