Imagem ex-librisOpinião do Estadão

O que Paula Oliveira diz a respeito do Brasil

Exclusivo para assinantes
Por Sérgio Fausto
4 min de leitura

Não sei em você, mas em mim o episódio da advogada Paula Oliveira, que mentiu às autoridades suíças sobre um suposto ataque que teria sofrido de neonazistas, provocou profundo mal-estar. Como agora se sabe, não só o ataque não ocorreu, como também Paula não sofreu o alegado aborto de dois bebês. Simplesmente não estava grávida. Por que o mal-estar diante do fato? Primeiro, porque ele reforça no exterior o preconceito de que nós, brasileiros, não somos confiáveis. Mais importante, porque o preconceito talvez não seja de todo destituído de fundamento. É certo que não somos todos mentirosos. É certo também não ser certo fazer generalização sobre o "caráter" de um povo. Não menos certo é que o episódio representa um caso extremo de pura e simples invenção de fatos não ocorridos. Mas quem de nós, brasileiros, há de negar que uma malandra propensão a driblar a verdade, embrulhá-la em artifícios retóricos ou escondê-la nas dobras de histórias mal contadas é um incômodo traço do nosso modo de ser, não raro socialmente valorizado como esperteza, "manha" ou traquejo? Não falo da verdade com maiúscula, até porque não acredito que ela exista. Falo da verdade com minúscula, atinente ao reles mundo dos fatos e das regras positivamente estabelecidas: isso é assim, aquilo é assado; pode isso, não pode aquilo. Nessa matéria a nossa marca tem sido a ambiguidade. Contou-me uma amiga uruguaia que passou seus primeiros anos no Brasil confusa por jamais obter uma resposta clara para perguntas começadas em "posso" ou "não posso", invariavelmente respondidas com um "poder pode, mas..." ou "poder não pode, mas...". Não nego que a ambiguidade pode ser útil para evitar conflitos desastrosos ou deixar certo espaço para adaptação de regras e práticas a circunstâncias e contextos variáveis. É tênue, porém, a fronteira entre a ambiguidade inofensiva e a dissimulação deletéria - pela omissão, negação ou distorção dos fatos - a serviço da transgressão, do embuste e/ou da fraude. O traço "cultural" da ambiguidade, em suas modalidades mais e menos benignas, reflete estratégias de sobrevivência e dominação que vêm de longe. Entre os mais pobres, o "hábito" de omitir ou contar histórias mal contadas foi uma das formas encontradas para escapar à punição arbitrária dos "de cima". Já entre os "de cima", a prática resulta do sentimento de não ter de prestar contas à sociedade ou ao Estado, de estar acima da lei. Entre todos nós, difundiu-se essa prática como um estratagema recorrente para driblar, por bons ou maus motivos, os obstáculos num muitas vezes kafkiano universo das obrigações burocráticas. Vistas em conjunto, essas estratégias revelam a escassa experiência histórica dos brasileiros com o que no mundo anglo-saxão se chama "rule of law", o império da lei. Não apenas o conjunto de leis, mas a sua aplicação eficiente, por um poder legitimamente eleito, a todos os cidadãos. Nada mais essencial ao ideal democrático. Os anglo-saxões não mentem menos na esfera pública porque são congenitamente mais virtuosos, mas sim porque aprenderam que a mentira ou a omissão tem custos e que a verdade pode trazer vantagens, diante de um sistema legal que opera com um razoável grau de equidade e eficiência. Uma conquista histórica que levou décadas e que jamais se pode dizer definitivamente assegurada. Em nenhuma outra área da vida brasileira a mentira ganhou tantas pernas e o embuste tantas formas quanto na política, sobretudo na ampla zona de interseção em que ela se encontra e se mistura com os negócios públicos e privados. Não sejamos ingênuos: em nenhum lugar do mundo os ideais da "transparência na política" e da separação entre a política e os negócios se concretizaram plenamente. E em nenhum lugar os protagonistas falam com sinceridade sobre como o jogo é jogado, mesmo diante das evidências mais claras. Mas convenhamos que no Brasil o desapego à verdade dos fatos chegou a extremos. O PMDB tornou-se um emblema dessa enfermidade, embora não seja o único a estar infectado por ela e a contribuir ativamente para propagá-la. O discurso político não apenas perdeu substância, como se tornou, na média, espantosamente cínico. Exemplo melhor não poderia haver do que a reação de várias das principais lideranças do partido à entrevista do senador Jarbas Vasconcelos à Veja. Não é assim em toda parte nem nós estamos condenados, como país, a descer sem parar o plano inclinado do cinismo e da desqualificação da política. Tome o exemplo do que ocorreu - depois de tanta desmoralização nos governos Bush - com vários indicados pelo presidente Obama para posições de alto nível no seu governo: detectados problemas em relação a conflitos de interesse e/ou impostos não declarados, tiveram de desistir da nomeação. Em nenhum dos casos, diga-se de passagem, os problemas identificados envolviam somas que chegassem perto do preço do castelo do deputado Edmar Moreira. Quantos, aqui no Brasil, passariam por essa peneira? Disso se trata: de criar filtros que possam minimamente separar o joio do trigo e gradual e democraticamente depurar a vida política do País. Para tanto, reformas e ajustes institucionais são necessários, sem dúvida. Mas em vez de terminar com mais uma lista de providências, prefiro encerrar, sem nenhuma ambiguidade, dizendo que ou rápido o Brasil se mostra capaz de julgar adequadamente os suspeitos de roubar dinheiro público e pôr os culpados na cadeia ou será muito difícil reverter democraticamente a tendência acentuada de degeneração da nossa vida política. E como os brasileiros e os latino-americanos sabemos, por experiências passadas, a depuração dos costumes políticos por via não democrática leva ao arbítrio, e não à solução dos problemas que diz atacar. Sérgio Fausto, coordenador de Estudos e Debates do iFHC, é membro do Grupo de Acom-panhamento da Conjuntura Internacional (Gacint) da USP E-mail: sfausto40@hotmail.com