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Opinião|O que responder para o gato de Alice?

Atualização:

Num ano em que até a pessoa mais exagerada não teria como prever os acontecimentos frenéticos que ocuparam nosso dia a dia, há sempre o perigo de naturalizarmos os valores enormes desviados, o troca-troca de cargos, a sensação de que nada muda de verdade. Pior de tudo é começarmos a achar que um Brasil melhor não é possível.

Várias gerações cresceram ouvindo e acreditando que o Brasil era “o país do futuro”. Mas agora, que se passaram anos da largada do século 21 e a promessa não se cumpriu, alguns parecem ter assumido um complexo de vira-lata: o Brasil nunca vai dar certo...

Um dos fatores cruciais para que a humanidade superasse o patamar de desenvolvimento medieval e promovesse as revoluções científicas, industriais e sociais foi a crença na possibilidade de um futuro melhor. Essa confiança é que faz com que haja crédito, projetos de longo prazo, investimento financeiro e intelectual.

Ora, fazer um país melhor demanda muito mais de nós. Ainda mais quando é preciso reconstruí-lo. É hora de sabermos que o Brasil não se tornará gigante apenas pela própria natureza. Fica cada vez mais claro que precisamos construir um projeto de nação, com a efetiva participação de todos. E para isso precisamos responder que futuro queremos para o Brasil, alicerçado em que tipo de desenvolvimento social, político, econômico, ambiental e educacional. Além de dizer o que e quem não queremos mais neste país, precisamos fazer as duras escolhas em torno do que, então, queremos. Que Brasil nós, cidadãos, queremos e estamos dispostos a construir?

Sim, nós, cidadãos. Não há democracia sem cidadania. Cidadania ativa, de posturas responsáveis para muito além do voto. Mais do que despejar raiva nas redes sociais, é assumir atitude aberta de diálogo com o diferente. Mais do que ir às ruas, é pôr a mão na massa, é cuidar da escola, do bairro, da cidade, dia a dia. É não achar que o que é público é de responsabilidade apenas do Estado. É corresponsabilidade e ação política a partir das nossas atitudes e ações.

Enquanto enxergarmos nossa cidadania apenas como votantes, consumidores, contribuintes e reivindicadores de benefícios, estaremos deixando de exercê-la plenamente. Precisamos participar da vida política, cuidar dos espaços que ocupamos e também dos brasileiros que não conhecemos, mas que queremos que tenham uma vida melhor, com mais oportunidades.

A crença de que política é sinônimo de corrupção e de que todo político não presta só nos prejudica. Em vez disso, precisamos difundir a compreensão fundamental de que a ausência ou até a recusa da política interessa demais a quem não quer renovação e deseja que tudo permaneça como está. Romper o muro de preconceitos que nos afasta das políticas públicas é uma mudança estruturante e necessária para que a participação efetiva ocorra – e esse projeto de país possa ser realizado. Precisamos reconhecer a possibilidade de uma política que, em vez de “servir-se de”, resgata o “a serviço de” – o poder de as pessoas agirem juntas pelo bem comum. Democratizar a democracia é necessário, é possível e está ao nosso alcance.

Hannah Arendt dizia que, “quando o homem participa da vida pública, abre para si mesmo uma dimensão da experiência humana que de outra forma fica fechada para ele, e que de certa forma constitui uma parte da ‘felicidade’ completa”.

Além das manifestações nas ruas, felizmente há um universo de ativismo cotidiano – que não se enquadra nos discursos polarizadores e por esse motivo ainda não é visto nem compreendido pelas esferas tradicionais – crescendo com uma potência que ainda não conseguimos medir ou prever. As pessoas e organizações que vêm interagindo com esses movimentos falam em células democráticas, microrrevoluções, coletivos. Alguns enxergam que há uma tendência – especialmente entre as camadas mais jovens – de adotar uma nova postura diante da vida em sociedade, que demonstra o desejo de pôr em prática outros modelos de desenvolvimento. Sim, há um novo ativismo em rede (não só digital), a partir do qual são formados novos espaços de exercício da cidadania, de participação plena, com novos modos de influenciar a esfera pública. Com forte inclinação prática, investem energias na construção de soluções, apostam no potencial de difusão em larga escala e, assim, fazem a sua parte para transformar a realidade.

Essas microrrevoluções podem reacender as esperanças de um outro futuro. Mas cabe-nos refletir: seriam essas práticas capazes de nos oferecer um novo rumo sem que haja um acordo maior, no conjunto da sociedade, sobre o Brasil que queremos? Qual o real valor dessas microrrevoluções sem que a sociedade saiba como acolher e valorizar aqueles que empreendem outras possibilidades de desenvolvimento?

Crescemos ouvindo a pergunta: O que você quer ser quando crescer? Essa questão nos ajuda a elaborar nosso projeto de vida, nos incentiva a ter expectativas altas quanto ao nosso futuro.

Da mesma maneira, precisamos parar para refletir e definir: Que país nós, brasileiros, queremos construir? Qual o meu papel no país que queremos? Não podemos mais deixar as respostas a essas perguntas em segundo plano.

A desilusão com o “Brasil, país do futuro” é uma possibilidade de aprendermos a recriar nosso imaginário convocador, para que seja mais real (afinal, o que significa ser “o país do futuro”?) e tenha a capacidade de orientar o desenvolvimento do Brasil na direção que juntos definirmos.

No livro Alice no País das Maravilhas: “‘Podes dizer-me, por favor, que caminho devo seguir para sair daqui?’ ‘Isso depende muito de para onde queres ir’, respondeu o gato. ‘Preocupa-me pouco aonde ir’, disse Alice. ‘Neste caso, pouco importa o caminho que sigas’, replicou o gato”.

O que preocupa muito é não termos um projeto de nação. Um projeto de futuro.

*Priscila Cruz e Eduardo Rombauer são presidente-executiva do Movimento Todos pela Educação e membro do Instituto Democracia e Sustentabilidade (IDS)

Opinião por Priscila Cruz
Eduardo Rombauer