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Opinião|O sorriso do caranguejo

Atualização:

Quando, no dia 16 de março, determinou a divulgação do conteúdo das escutas telefônicas das conversas do ex-presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva (uma delas com a atual presidente da República, Dilma Rousseff), o juiz Sérgio Moro pôs em risco a credibilidade da Operação Lava Jato. Não havia clareza sobre o fundamento jurídico para decisão tão inesperada. A lei que regula a interceptação telefônica para fins de investigação impõe que as gravações e transcrições figurem “em autos apartados, apensados aos autos do inquérito policial ou do processo criminal” e manda preservar “o sigilo das diligências, gravações e transcrições respectivas”. Qual teria sido, então, o critério do juiz para não observar essa regra?

As explicações que se seguiram, dadas por ele e por seus apoiadores no debate público, não pareceram satisfatórias. Falou-se que o juiz agira em atendimento ao “interesse público”, o que soou um tanto arbitrário. No Estado democrático, o interesse público requer que juízes cumpram a lei. Admitir qualquer conduta fora desse cânone implica admitir a suspensão da regra do jogo, o que abre atalhos para o imprevisível.

Faz parte da normalidade democrática que repórteres e redações jornalísticas independentes, tendo acesso a uma informação que a Justiça tem o dever de manter sob sigilo, decidam por publicá-la, em atendimento ao interesse público. A imprensa existe para quebrar segredos do poder e, para isso, conta com o direito constitucional de manter o segredo sobre a identidade das suas fontes (pois essas fontes são indispensáveis para que os jornalistas quebrem os segredos do poder). Acontece que juiz não é repórter, e pouca coisa é mais perigosa do que um juiz que se imagine repórter. A mesma democracia que depende da imprensa livre para investigar o poder depende de agentes públicos que saibam se ater aos termos da lei. Se sairmos desses marcos, sairemos da normalidade democrática.

Por tudo isso, a desculpa de que Moro teria agido em favor do “interesse público” não se sustentou. Foi quando entrou em cena um outro argumento. Juristas de renome disseram que, ao decretar a quebra do sigilo, Moro estaria obedecendo ao princípio constitucional da publicidade. Outra vez, a alegação não convenceu. O princípio da publicidade não existe para violar as fronteiras da vida privada de quem quer que seja, mas para assegurar transparência aos negócios do Estado. As democracias se distinguem das tiranias também nisso: nas primeiras, a vida privada das pessoas é respeitada pela autoridade, enquanto o Estado se obriga à transparência; nas segundas, o Estado é opaco e seus agentes reviram a intimidade dos cidadãos a qualquer momento, segundo critérios nunca explicados.

Teria Moro adotado uma medida de exceção? Dúvidas pertinentes e muito sérias a respeito do procedimento se avolumavam. Esclarecimentos se faziam necessários. Foi só agora, na terça-feira, que o juiz apresentou suas explicações, mediante solicitação do ministro Teori Zavascki, do Supremo Tribunal Federal (STF), para quem a divulgação da escuta foi ilegal. Em ofício dirigido ao STF, Moro demonstra humildade, mas não resolve o problema continental que criou. Admite a possível ocorrência de um “equívoco” e pede “respeitosas escusas” pela polêmica gerada por seu ato, mas deixa no ar a sensação de que teria agido de modo irrefletido. A sensação piora quando se leva em conta que a conversa entre Lula e Dilma (que não era alvo da investigação), também divulgada, aconteceu após o horário definido pelo próprio Moro para o fim da interceptação. Por que ele mandou divulgar um diálogo cuja gravação escapa ao prazo por ele mesmo definido? Por distração?

Só o que se pode deduzir daí é que o juiz, apesar de suas boas intenções e apesar de assegurar que não agiu por motivações partidárias ou políticas, reconhece que pode ter cometido um erro. O problema é que as consequências desse erro são devastadoras e já não podem ser corrigidas. A declaração de Dilma ao telefone com Lula foi amplamente massificada como evidência incontestável de que a presidente agia para obstruir a Justiça – e essa evidência logo se incorporou às alegações jurídicas que inflaram as pregações pelo impeachment. E nem Moro parece considerar grave a fala de Dilma. Lembremos o que ele escreve em seu ofício: “No que se refere à Exma. presidente da República, não há qualquer manifestação dela assentindo com esse propósito” (de “influenciar, intimidar ou obstruir a Justiça”). Logo, na opinião do juiz, a escuta não teria produzido prova contra Dilma, mas, para a campanha pelo impeachment (impeachment-seja-do-jeito-que-for), a ausência de prova não faz diferença.

Em resumo, o possível “equívoco” de Moro (uma “ilegalidade”, segundo Zavascki) deu impulso à cada vez mais provável cassação sem provas – não provas que atendam às formalidades forenses, mas ao discernimento crítico da opinião pública de boa-fé.

Embora estejamos mergulhados numa guerra entre fundamentalismos irracionais, na qual os governistas posam de coitadinhos, de vítimas, como se o PT e a presidente da República não estivessem no poder há 14 anos e como se o governo não fosse o maior responsável pela crise que aí está, precisamos olhar os fatos com um mínimo de sensatez. Quem atropela os meios em nome de um fim salvacionista pode comprometer os fundamentos da democracia e o futuro imediato.

No alto da primeira página da edição de ontem deste jornal, uma foto de todo tamanho mostra a cúpula do PMDB festejando o resultado da reunião que sacramentou a ruptura entre o partido e o governo. Lá está o sorriso do caranguejo. Parlamentares incriminados até a alma condenarão uma presidente que, apesar de incompetente e inepta, é inocente e honesta, até prova em contrário. Algo está muito errado, e pode ficar mais errado ainda.

*Eugênio Bucci é jornalista e professor da ECA-USP

Opinião por Eugênio Bucci