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Opinião|O STF e uma confusão rural

Como explicar que interpretação unânime que vigorou por sete anos seja invertida?

Atualização:

Casuísmos e incoerências do Supremo Tribunal Federal (STF) não se verificam somente em casos de importância histórica para a Nação, como na questão da prisão de condenados em segundo grau. Infelizmente, existem muitas outras ocorrências. No setor rural, um caso de menor relevância, embora gravíssimo para milhares de produtores rurais, trata da constitucionalidade da cobrança da contribuição social do empregador rural pessoa física (Funrural).

Compreender a estrutura tributária e de contribuições sociais do Brasil não é tarefa fácil. Advogados e contadores quase sempre conseguem desenvolver interpretações divergentes, criando permanentemente contenciosos nos tribunais administrativos e judiciais. A confusão existente é parte importante do chamado custo Brasil, grave empecilho para o maior desenvolvimento nacional. O Funrural é um grande exemplo dos absurdos brasileiros. Nunca teve interpretação tranquila. A legislação mais antiga, a antiga e a atual atribui ao adquirente da produção de produtor rural que atue como pessoa física a responsabilidade pela dedução do valor devido pelo produtor e pelo recolhimento aos cofres públicos. 

Em 2010, por decisão unânime, o STF julgou inconstitucional a contribuição por entender que a contribuição previdenciária havia sido instituída por lei ordinária, e não por lei complementar, como deveria ter sido. Embora essa decisão de 2010 fosse singular, aplicada unicamente ao processo julgado, acabou refletindo em percepção sobre a inconstitucionalidade do Funrural. Induziu milhares de adquirentes e, na sequência, produtores a procurarem o Poder Judiciário, obtendo decisões liminares de primeira instância, posteriormente mantidas em muitos Tribunais Regionais Federais. Em 2011, durante a tramitação de outra ação, novamente foi considerado inconstitucional.

A lentidão do Poder Judiciário, existente não apenas no STF, permitiu criar a confusão que ora enfrentamos. Passamos a ter adquirentes de produção rural que descontavam a contribuição dos produtores e recolhiam aos cofres públicos; adquirentes que não descontavam e não recolhiam, por serem detentores de medida do Poder Judiciário caracterizando a contribuição como inconstitucional; e produtores que recorreram ao Poder Judiciário e instruíram adquirentes a não descontar a contribuição, criando por longo período uma heterogeneidade entre iguais, que representou grave distorção.

Em abril de 2017 o plenário da Suprema Corte decidiu reexaminar a questão, introduzindo o que entenderam como novos elementos, embora nem tão novos fossem, pois já existiam em 2010. Dessa vez decidiram pela constitucionalidade do Funrural. Essa decisão alterou o entendimento até então existente, que vigorou por sete anos. 

O passivo criado a adquirentes e milhares de produtores rurais (*) pelo novo entendimento do STF e, mais do que isso, a insegurança jurídica provocada por essa alteração jurisprudencial tornam esses produtores inviáveis. O julgamento dos embargos declaratórios dessa decisão do STF não foi ainda realizado. Sete anos é muito tempo, agora oito, para uma questão desse nível de gravidade permanecer em suspenso. Justiça lenta é falta de justiça. 

Como explicar uma reversão de interpretação dessa magnitude? A primeira, obtida por unanimidade na Suprema Corte; a mudança, em julgamento no qual, por maioria de 6 votos a 5, ficou entendido o inverso. Em sete anos ministros se aposentaram e chegaram outros. Mesmo assim, houve ministros que mudaram sua interpretação. 

Compreender é praticamente impossível. A lei antiga deixou de transcrever incisos, somente o caput de um artigo da lei, que fixava as alíquotas na lei mais antiga. Como a lei foi declarada inconstitucional, esse artigo não existiria, tese reforçada por resolução Senado que estava esquecida, porém foi votada após a decisão de 2017. E a nova lei – que foi prorrogada, aprovada, sancionada e aguarda a votação no Legislativo de vetos do Executivo – já começa a ser contestada, existindo até decisões nos tribunais de Mato Grosso do Sul. A Sociedade Rural Brasileira participa do processo no STF como amicus curiae desde 2015. Após a decisão de 2017 apresentou embargos solicitando a modulação dos efeitos da decisão, isto é, pleiteia que a nova interpretação do STF seja válida para o futuro e que para o passado seja válida a interpretação antiga.

Um significativo valor deixou de ser recolhido aos cofres públicos. Responsabilidade de quem? Do adquirente de produto agropecuário que, induzido por decisão unânime do STF e amparado pelo Poder Judiciário, não recolheu, pois seria uma contribuição inconstitucional; no momento em que um adquirente deixou de descontar do produtor, criou pressão de mercado, levando seu concorrente a procurar a mesma condição. Do produtor rural que, com a percepção criada de que se tratava de contribuição ilegal, obteve medida do Poder Judiciário para o não pagamento. Do Poder Executivo, que assistiu à perda de arrecadação, porém aguardou calmamente o Poder Judiciário se pronunciar, sem procurar desenvolver junto ao Poder Legislativo uma interpretação sem margem de dúvida nesse longo período. Do Poder Judiciário, que parece não ter pressa em atender às demandas por equidade e justiça da sociedade e quando o faz, após sete anos, decide inverter uma interpretação anteriormente unânime.

Após a decisão de março de 2017 no STF, o Poder Executivo encaminhou medida provisória com o ordenamento da cobrança do passivo criado pelo não recolhimento. O Poder Legislativo atuou emendando a legislação, numa tramitação tumultuada. Datas prorrogadas, inserção de novas questões, acordos não cumpridos e vetos ainda a serem votados no Legislativo. Desgaste político para todos. Um problema criado no Poder Judiciário somente lá consegue ser resolvido.

*EX-PRESIDENTE DA SOCIEDADE RURAL BRASILEIRA (*) O autor não tem passivo referente ao Funrural.