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Opinião|O SUS contra a ciência

Silêncio e omissão da comunidade científica sobre certas ‘terapias’ poderá ceifar vidas

Atualização:

A medicina moderna revolucionou a saúde, ampliando notavelmente a expectativa de vida. Vacinas, antibióticos, quimioterápicos, procedimentos cirúrgicos, entre tantos outros, são alguns exemplos de medicamentos e tratamentos que permitem a cura e o controle de doenças que no passado foram incapacitantes ou fatais. 

Antes do desenvolvimento científico, a medicina era baseada em práticas que visavam ao “equilíbrio das energias do corpo”, conceito pouco definido que se procurava atingir com procedimentos potencialmente perigosos, como a sangria, o uso de sanguessugas ou a ingestão de metais pesados. Não havia conhecimento estabelecido sobre agentes infecciosos e fisiologia humana.

Lamentavelmente, algumas técnicas ditas curativas, que ignoram os avanços da ciência, ainda são reverenciadas na atualidade, como homeopatia e acupuntura, sendo socialmente aceitas sob o rótulo de “medicina alternativa”. Foram recentemente renomeadas, com alguma pompa, de Práticas Integrativas e Complementares (PICs). Para assombro da comunidade científica, a homeopatia, a acupuntura e outras PICs bastante questionáveis, como dança circular, o termalismo social e a arteterapia entraram no Sistema Único de Saúde (SUS) a partir de 2006. Agravando essa espantosa decisão, em 2018 outras dez PICs foram também incorporadas, incluindo aromaterapia, cromoterapia, imposição de mãos, terapia de florais e geoterapia.

Nenhuma dessas terapias tem eficácia cientificamente comprovada. Para ser considerado eficaz um medicamento ou tratamento deve passar por uma extensa série de rigorosos testes clínicos que garantam sua segurança e funcionalidade. Quando dizemos que não há evidências científicas de que pseudociências recém-incorporadas ao SUS funcionam, indicamos que elas falharam nesses testes ou, pior, nem sequer foram a eles submetidas.

E por que muitas pessoas insistem teimosamente em que essas práticas funcionam? O principal responsável por essa convicção é o efeito placebo, explicado pela autossugestão ao receber um tratamento “falso”, como uma pílula de açúcar. Esse efeito pode confundir o usuário das pseudociências, dando-lhe a falsa impressão de que o tratamento é eficaz. Há outros fatores a considerar, como regressão à média e cura espontânea.

Várias doenças são cíclicas e o paciente busca tratamento somente quando sente o auge dos sintomas. Ora, como a tendência natural da doença é que os sintomas regridam naturalmente, o crédito fica para o tratamento alternativo. 

Outro fator explicativo é a cura espontânea, fruto do trabalho do nosso sistema imune, como é comum em resfriados. É dito irônico em ciência que uma gripe costuma passar em sete dias, mas se você usar homeopatia ela passará em uma semana. Além disso, existem doenças típicas de certas fases da vida. Assim, uma doença da infância pode desaparecer na puberdade.

Às vezes acontece também de um trabalho de pesquisa ressaltar que uma determinada prática funciona, mas outro afirma o contrário. Em qual confiar? Há uma ferramenta em ciência chamada meta-análise e revisão sistemática. Analisam-se todos os trabalhos publicados sobre determinado assunto e se chega ao resultado somatório de todos eles, com o cuidado de incluir somente os que seguiram o método científico. Isso porque muitas vezes um trabalho incorpora alguma falha metodológica que pode distorcer o resultado. As pseudociências em geral se valem desses trabalhos mal feitos para tentarem confirmar sua eficácia.

Graças a essas meta-análises e revisões, a homeopatia, por exemplo, foi banida da rede púbica de saúde na Austrália e no Reino Unido. Trabalhos extensos conduzidos por organizações independentes concluíram que não funciona melhor do que um placebo. Nos Estados Unidos, remédios homeopáticos apresentam, em suas bulas, o alerta sobre a falta de comprovação científica. No Brasil, ao contrário, ambos são endossados pelo Conselho Federal de Medicina e, espantosamente, a homeopatia figura como disciplina obrigatória em algumas universidades.

No caso da acupuntura, seus defensores afirmam que as aplicações das agulhas em pontos específicos transportariam “energia pelo corpo”. Esse mecanismo nunca foi demonstrado. A aura dessa prática talvez decorra de sua antiguidade e de uma suposta “sabedoria oriental”.

Várias sociedades científicas, além do próprio Conselho Federal de Medicina, manifestaram sua indignação contra as pseudociências abrigadas no SUS. No entanto, não o fizeram de modo concertado no passado nos casos da homeopatia e da acupuntura. Seriam dois pesos e duas medidas? Se essa recusa seletiva persistir, tolerando algumas pseudociências, mas atacando outras, logo teremos aulas de apiterapia (terapia de picadas de abelhas), aromaterapia e cromoterapia nas universidades. 

Estamos tratando de uma das mais importantes políticas públicas brasileiras, reconhecida mundialmente. Se uma parte dos recursos físicos, humanos e financeiros do SUS é alocada para as PICs, estará sendo subtraída de onde? Das mamografias? Das vacinas? Dos coquetéis anti-HIV? 

Se pacientes informados ainda caem nas mãos de charlatães, o que dizer dos mais pobres, carentes de educação formal e da atenção do Estado? O público majoritário do SUS é formado pelos que estão na larguíssima base da pirâmide social e, em parte considerável, não tiveram acesso sequer aos bancos de escola, muito menos aos conhecimentos básicos de iniciação científica para escolher entre ciência e magia. Oferecer as PICs no SUS serve apenas para enganar de modo populista as camadas sociais mais pobres. São procedimentos antiéticos e perigosos e ainda podem adiar diagnósticos e tratamentos necessários. O silêncio e a omissão da comunidade científica poderá ceifar vidas.

*RESPECTIVAMENTE, PH.D. ICB-USP E PROFESSORA TITULAR, IQ-USP

Opinião por NATALIA PASTERNAK TASCHNER E ALICIA KOWALTOWSKI