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O SUS e a incorporação de tecnologias

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Por Cláudio Maierovich Peçanha Henriques
3 min de leitura

O conceito de atendimento integral previsto no capítulo da saúde da Constituição brasileira não pode ser interpretado como "todas as tecnologias oferecidas no mercado para todas as pessoas", o que, além de inviável em qualquer sistema de saúde, multiplicaria os riscos de procedimentos de indicação duvidosa. A sociedade e os gestores da saúde têm procurado identificar necessidades reais de saúde, avaliar as tecnologias existentes, eleger prioridades e organizar o acesso aos serviços e produtos. No contraponto, programas de TV e revistas de grande circulação ostentam semanalmente reportagens sobre novidades miraculosas da medicina. Raramente se tem notícia sobre seu impacto depois de algum tempo ou sobre os problemas decorrentes de sua aplicação. Sob influência da mídia e dos vendedores, profissionais de saúde e os que sofrem com as doenças se encantam com as promessas e as demandam para o sistema de saúde. Os benefícios alardeados transpõem o universo das doenças. São curas para males recém-criados, imunidade, beleza, virilidade, juventude, bem-estar, longevidade e - por que não? - felicidade, além de uma agenda para identificar qualquer indício remoto de desvio em exames. Os alvos são pessoas sem doenças, com desejos, preocupações, inseguranças e ansiedade (todos nós, portanto). O que assistimos, muitas vezes, é à transformação da saúde em produto à venda nas gôndolas dos supermercados, nas páginas dos jornais e nos intervalos das novelas. Trata-se de um sonho de consumo mal dimensionado, em que nem sempre os resultados são os prometidos pelo vendedor e tão desejados por quem compra. Assim, tecnologias para prevenção, diagnóstico e tratamento transformam-se em objetos de desejo ou salva-vidas dos desesperados. Familiares exaurem seu patrimônio na expectativa, muitas vezes frustrada, de adiar uma morte por alguns meses, sem saber que sofrimento ilustrará essa sobrevida. São numerosos os produtos lançados com indicações sedutoras. Numa avaliação sobre 120 novos medicamentos ou novas indicações apresentados em 2008, La Revue Prescrire classificou seis como os que apresentavam alguma vantagem, 25 como eventualmente úteis, 57 como sem novidade, não pôde se manifestar sobre nove outros e afirmou que 23 estão em desacordo com seus parâmetros. Foram, portanto, reprovados 74% como novidades. O impacto financeiro é alto. Nos EUA, em todos os anos desde a 2ª Guerra, os gastos totais em saúde vêm aumentando mais rapidamente do que o PIB do país, tendo passado de 5% do produto nacional bruto em 1960 para 15,2% em 2005, atingindo a média per capita de US$ 6.347. Os EUA gastam somente em saúde cerca de duas vezes o produto interno bruto (PIB) brasileiro e não oferecem cobertura assistencial a toda a população, que tem ainda uma série de restrições para acesso a medicamentos e tecnologias de alto custo, dependendo, em geral, dos critérios de seus planos privados de saúde. O modelo brasileiro aproxima-se do canadense e de diversos países europeus, representantes da lógica do Estado de bem-estar social, que oferecem acesso universal ao sistema de saúde com financiamento público. Para sustentar tal benefício com recursos muito inferiores aos estadunidenses os países se apoiam em sistemas de saúde organizados e instrumentos formais para sopesar prioridades e avaliar as tecnologias antes de decidirem custeá-las. Para decidir sobre incorporação de tecnologias, o Ministério da Saúde analisa informações de diferentes naturezas, começando pelo levantamento de estudos considerados de boa qualidade metodológica sobre sua eficácia, segurança e outras características relevantes. São avaliadas também as informações epidemiológicas sobre o problema que se propõe a enfrentar. Todas as decisões são fundamentadas em rígidos critérios técnicos e científicos, cujo lastro é a preocupação com a saúde individual e coletiva da população. A novidade proposta é comparada a outros produtos ou técnicas disponíveis para a mesma finalidade quanto ao desempenho, à possibilidade de adoção segura pelos serviços públicos e aos custos estimados. Esta também pode ser a oportunidade para excluir ou substituir produtos e métodos obsoletos ou que não têm o necessário lastro científico. Novas tecnologias exigem reformas, equipamentos, treinamento dos profissionais e incorporação de exames laboratoriais. Por isso é difícil avaliar propostas baseadas apenas em estudos com populações e condições de atenção muito diferentes das brasileiras. Nos últimos três anos foram propostos ao Ministério 136 produtos para incorporação, sendo 117 por empresas interessadas. Do total, até o momento, sete foram rejeitados após as avaliações e 15 hoje estão entre os medicamentos de alto custo fornecidos pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Sempre que um produto ou procedimento é introduzido, devem existir regras que estabeleçam precisamente as circunstâncias e condições de indicação, forma de utilização, critérios de acompanhamento e interrupção. São os protocolos ou diretrizes clínicas para orientar condutas e decisões dos profissionais de saúde, que podem não ter convivido, durante sua formação, com técnicas recentes e raramente têm acesso às informações no tempo necessário. Por fim, quando diversas necessidades concorrem pelos mesmos recursos, sua priorização se subordina à política nacional de saúde, formulada e pactuada pelos gestores das três esferas de governo e aprovada pelas instâncias de participação do SUS, os Conselhos de Saúde. A dificuldade da escolha é diretamente proporcional à distância entre as necessidades e as possibilidades conferidas pelas atuais receitas do setor público de saúde. Cláudio Maierovich Peçanha Henriques, médico, é coordenador da Comissão de Incorporação Tecnológica do Ministério da Saúde (Citec)