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O valor do multilateralismo

Ele é importante elemento para a construção de um ambiente internacional mais harmonioso

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Por Redação
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Durante recente evento que reuniu diplomatas em Bruxelas, o secretário de Estado dos Estados Unidos, Mike Pompeo, defendeu o que chamou de “uma nova ordem mundial liberal”. Segundo ele, o governo do presidente Donald Trump deve levar seu país a exercer “liderança assertiva ao lado de democracias de todo o mundo” para que a vontade de “Estados soberanos”, enfim, prevaleça sobre “instituições multilaterais”. Só assim, defendeu o secretário, haverá a “restauração real, não fingida, da ordem liberal entre as nações”.

A declaração de Pompeo embute uma falácia. Não é verdade que “Estados soberanos” estejam à mercê de decisões tomadas por instituições multilaterais como a Organização das Nações Unidas (ONU), a Organização Mundial do Comércio (OMC), a União Europeia, a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), o Banco Mundial ou o Fundo Monetário Internacional (FMI). É o exato oposto.

Foi graças ao fortalecimento dessas instituições que muitos países puderam crescer – política, econômica e militarmente – e, assim, ter voz ativa no cenário geopolítico global. No entanto, lideranças que pretendem atacar o que se convencionou chamar de multilateralismo, por variadas razões, recorrem corriqueiramente ao argumento da perda de soberania para fazer valer suas posições.

O discurso de Mike Pompeo se coaduna com o de seu chefe. Em setembro, na Assembleia-Geral da ONU, Trump atacou o que chamou de “globalismo” e de “burocracia global”, que seriam entraves ao crescimento econômico dos Estados Unidos – vítima de uma série de condições comerciais e acordos “injustos” – e algozes de milhares de postos de trabalho de cidadãos americanos.

A eleição de Donald Trump para a presidência dos Estados Unidos, em 2016, deu enorme fôlego aos líderes mundiais que veem o multilateralismo pelas lentes de suas pontuais deficiências e anacronismos, e não por suas virtudes. Dada a posição dos Estados Unidos como liderança máxima do chamado “mundo livre”, não surpreende o poder difusor do ideário do ocupante da Casa Branca. Não faltam exemplos de nações, em todos os continentes, que veem o “globalismo” como a grande ameaça à paz mundial. O discurso “pegou” inclusive no Brasil.

A crise do multilateralismo, entretanto, precede Donald Trump. Ela deriva do natural envelhecimento de um sistema que por mais de sete décadas tem permitido que o mundo viva um dos mais longevos períodos de paz e prosperidade da História. Estamos hoje infinitamente melhores do que estávamos nas primeiras décadas do século 20 graças ao concerto de nações que, se não foi capaz de evitar a 2.ª Guerra, tem sido engenhoso o bastante para evitar a eclosão de conflitos em grande escala e de resultados inimagináveis.

Hoje há importantes atores globais que não estão devidamente representados nos organismos multilaterais, como o Brasil, a China e a Índia. É natural que organizações que traduziam um mundo de meio século atrás necessitem de reformulação. Neste sentido, a cúpula do G-20, em Buenos Aires, emitiu um bom sinal ao defender “reformas” na OMC, o que traduz um evidente reforço do valor do multilateralismo como regra do xadrez internacional.

Houve um tempo em que as nações se sobrepunham umas às outras pela força de seus exércitos. As relações internacionais não podem retroceder a este ponto. O caminho que nos trouxe à planície da paz e do desenvolvimento social, científico, político e econômico foi o caminho da negociação. Esta tem sido a característica da diplomacia do Brasil, que dela não deve se desviar.

Diminuir a importância do multilateralismo significa rasgar as regras de um jogo em que eventuais perdas pontuais são suplantadas por enormes ganhos globais. O multilateralismo é um importante elemento para a construção de um ambiente internacional mais harmonioso. As pontuais deficiências de algumas partes deste engenhoso sistema não podem servir de argumento para a destruição do todo, mas para o seu aperfeiçoamento.