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O veneno das ruas fechadas

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Por Redação
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Não demoraram a surgir as consequências do péssimo exemplo dado pela grande maioria dos vereadores e o prefeito Fernando Haddad, que se uniram para tentar legalizar o absurdo fechamento de ruas na capital. Antes mesmo da sanção por Haddad de projeto nesse sentido, de sua iniciativa, aprovado pela Câmara Municipal, moradores do Butantã, certamente estimulados por essa despudorada privatização do espaço público, resolveram dar uma demonstração de que, com relação a essa questão, agora cada qual é livre para fazer o que bem entende.

Moradores das Ruas Murtinho Nobre, Romão Gomes e Blandina Ratto recolocaram no local portões que haviam sido retirados após decisão do Tribunal de Justiça, de 2014, que tornou sem efeito lei anterior que permitia o fechamento de ruas sem saída e vilas. Com os portões fechados das 22 às 4 horas, essas ruas formam um “condomínio”, pelo qual só podem circular naquele período os seus moradores ou quem eles autorizem. Ficam prejudicados todos os outros motoristas que antes utilizavam aquelas vias, inclusive os que vêm pela Marginal do Pinheiros, no sentido Interlagos, e agora são impedidos de ter acesso a elas.

O motivo que os moradores dessas ruas alegaram para fechá-las, como mostra reportagem do Estado, é o mesmo de todos os outros – que já se contam aos milhares – que agiram dessa forma nos últimos anos em vários bairros: garantir sua segurança e sua tranquilidade. Nesse caso específico, uma e outra são afetadas pela prostituição, praticada por travestis, e por traficantes de drogas. Além de se sentirem ameaçados, eles têm o sono perturbado pelo barulho nas ruas.

Como diz um morador, “querendo ou não, você está chegando com sua família e (isso) incomoda. Não é uma cena que alguém quer na porta de casa”. Tem ele toda razão. O problema é que têm a mesma razão os demais paulistanos que vivem situação igual, semelhante ou equivalente e nem por isso, para se proteger, avançam no direito dos outros, apropriando-se abusivamente, com a maior desfaçatez, de ruas que pertencem a todos.

Esse avanço sobre o patrimônio público não se faz apenas com o fechamento de ruas com portões e cancelas. Ele inclui também a contratação de seguranças particulares, como os que vigiam o “condomínio” do Butantã. Ali, a sofisticação, se se pode dizer assim, chegou a ponto de o carro usado por eles nas rondas ter giroflex, equipamento usado por viaturas policiais. As ruas fechadas estão se tornando assim, e já faz tempo, verdadeiros quistos urbanos, com equipamentos de isolamento e força de segurança privada.

A Prefeitura, que diz desconhecer aquilo que a reportagem descobriu facilmente, promete que, “constatadas as irregularidades”, os moradores da área cercada serão intimados a retirar os portões. Providência absolutamente inútil, porque logo em seguida, de acordo com a lei a ser sancionada por Haddad, bastará que 70% deles aprovem o fechamento daquelas ruas para que ele se torne legal, em condições não muito diferentes das anteriores e com contrapartidas que em sua maioria beneficiam eles próprios.

O problema central está na legalização, desastrosa e irresponsável, do fechamento de ruas, que ameaça transformar a maior cidade do País numa casa de ninguém, onde cada um – com destaque para os mais poderosos e afoitos – pode fazer o que bem entende com o espaço público.

É fácil imaginar o estrago que o argumento da presença de dependentes de drogas, traficantes e travestis – para ficarmos apenas nas alegações do moradores do “condomínio” do Butantã – pode fazer, por exemplo, no espaço público dos bairros vizinhos da Cracolândia. Pode haver ali uma proliferação de quistos urbanos. E dificilmente se conseguiria, então, impedir que isso, aos poucos, se espalhasse para outras áreas da cidade.

A lei das ruas fechadas é um veneno perigoso para o qual não atentaram Haddad e a Câmara.