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O vermelho de abril

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Por Gaudêncio Torquato
3 min de leitura

Abril será tão vermelho quanto promete o Movimento dos Sem-Terra (MST)? A promessa está no ar: a meta é superar as 29 invasões de terra ocorridas no ano passado. O que está por trás dessa recorrente agenda do caos, quando se sabe que o MST ajusta as ações às estratégias eleitorais de Lula? Foi assim em 2002 e em 2006, quando o MST, detectando reais condições de vitória de seu candidato, praticamente ficou inerte. Já em anos seguintes ao pleito ? 2004, com 103 invasões, e 2007, com 74 ? o movimento procurou recompor as bandeiras encarnadas pelo território, a sinalizar a adoção do modelo "sanfona", vaivém, e passando a ser visto como organização de interesses calibrados por patronos e circunstâncias. O que caiu sobre o telhado bem fornido do MST, que será um estorvo à campanha da candidata Dilma Rousseff, caso efetivamente venha a cumprir a ameaça de perturbar a segunda quinzena de abril com as previsíveis cenas de ocupação de propriedades e destruição de equipamentos e plantações?É pouco crível o argumento de que os líderes pretendem sinalizar descontentamento com os rumos da reforma agrária na atual administração, quando se sabe que a estreita interlocução com autoridades permite concluir que os passos tomados por ambos os lados são devidamente combinados. Aliás, o ajuste se faz necessário até para evitar interrupção do fluxo de recursos que ingressam no movimento por vias transversas. Tampouco parece lógica a ideia de que o recrudescimento do programa de invasões sinalizaria reação à criminalização dos movimentos sociais, cujo aniquilamento estaria sendo planejado por uma "direita que se rearticula", segundo o comandante do MST, João Pedro Stédile.Até onde a vista alcança, a virada de avesso no campo causará efeito contrário ao que se pretende. Conseguirá apenas expandir a repulsa social e a pressão para conter o ímpeto dos invasores. Descartando-se mais essa hipótese para o anunciado surto emessetista, sobra o viés eleitoreiro, cujo recado pode ser: "Ou vocês, candidatos, fazem a reforma agrária que queremos ou vamos botar pra quebrar." Se for essa a intenção, o ônus recairá sobre Dilma Rousseff.É oportuno lembrar que a tentativa de estabelecer conexão entre a candidata de Lula e a parcela que defende a "revolução socialista" é de todo indesejável nesse momento. Vamos às razões. Como se sabe, Luiz Inácio substituiu o manto programático pelo figurino pragmático. Basta expor a radiografia do governo. A linguagem cifrada da velha esquerda, com seus surrados refrãos, é usada por ele com parcimônia. Os eixos econômicos da administração são firmemente pregados à roda do neoliberalismo, mesmo se concedendo considerável espaço ? bem maior no pós-crise ? ao papel do Estado nos rumos da economia. Fosse confinado ao dogmatismo da velha cartilha, Lula não lideraria ações confrontadas por movimentos sociais, como a questão dos transgênicos, a transposição do São Francisco, a construção de hidrelétricas, a produção de biocombustível, entre outros programas. Até os PACs (1 e 2), com seu decantado aglomerado de obras, deixam boquiabertos grupos ambientalistas. Emblema dessa disposição é o caso que Lula gosta de realçar: a "perereca" que quase barrou a construção de um túnel.Luiz Inácio tem sabido jogar com os contrários. Para arrefecer a bateria crítica, não deixa por menos. Promove amplos ensaios de cooptação. Primeiro, incentiva a abertura de locução dos movimentos sociais. Que se sentem motivados a falar mal de certos projetos. Segundo, abre dutos para irrigação de ONGs com uma batelada de recursos. Terceiro, promove articulação junto a núcleos representativos da sociedade, engajando-os em mecanismos governamentais (Câmaras, grupos de trabalho, comitês, etc.). A seguir, Lula vai ao seu encontro, prestigiando eventos, falando a linguagem que as entidades desejam ouvir, repetindo mantras e colorindo palanques com a liturgia dos bonés. A regra é: morder e assoprar. Dessa forma, agrada a gregos e troianos. Não por acaso, o grevismo na área federal passa férias sob a montanha de um vulcão extinto. Uma ou outra greve atravessa ligeirinha os horizontes da administração, sem abalar os alicerces lulistas.Para os adversários, contudo, os canhões grevistas são intensamente usados. Veja-se essa greve de professores em São Paulo, com claras intenções de bagunçar a despedida de José Serra do governo. Já as centrais sindicais gozam de permanente festa. Locupletadas de recursos ? provenientes de contribuições do sistema confederativo ?, as gigantescas estruturas deixam as ruas para permanecer nos gabinetes.É interessante ver um palco repleto de atores malemolentes? Não. Daí a necessidade de povoar os espaços cênicos com perfis exóticos, gente espalhafatosa, contendores desabridos e até fomentadores de ruptura de convenções. Inserem-se, aqui, os grupos que agem para demolir as bases da lei e da ordem, a partir do MST. Essa organização tem sido contumaz desafiante do sistema normativo. Seu alvo é o agronegócio, que responde por um terço dos empregos do País e por um superávit de US$ 23 bilhões da balança comercial. O curto-circuito da ilegalidade provoca incêndio. E prejuízo de monta.O governo lava as mãos, sinalizando que outra esfera, a Justiça, é quem pode entrar em ação. Preserva-se. Mas continua a receber apoio do movimento. Agora, o governo se encontra diante de uma sinuca de bico. O MST garante que vai abandonar o esconderijo em que se abriga em anos eleitorais. Promete mais uma algazarra no campo na segunda quinzena de abril, descosturando acordo tácito feito há tempos. A vermelhidão deste abril é a proposta cromática mais adequada para José Serra melhorar a plumagem azul e amarela de seu tucano.JORNALISTA, É PROFESSOR TITULAR DA USP, CONSULTOR POLÍTICO E DE COMUNICAÇÃO