Imagem ex-librisOpinião do Estadão

Obscurantismo explícito

Na 'política cultural' do governo de Jair Bolsonaro, a ignorância parece ter se tornado a exigência curricular

Exclusivo para assinantes
Por Notas & Informações
2 min de leitura

O presidente Jair Bolsonaro disse há alguns dias que a cultura no Brasil “tem que estar de acordo com a maioria da população, e não com a minoria”. Com base nessa visão equivocada e antidemocrática da administração pública, já que o presidente da República não pode governar só para a “maioria” e não pode condenar minorias ao limbo, Bolsonaro pretende transformar a área cultural na ponta de lança de sua guerra imaginária contra a esquerda.

Será um erro minimizar essa ofensiva, reduzindo-a a um devaneio inconsequente do bolsonarismo. Pode-se achar graça do discurso que põe em dúvida o formato redondo da Terra, mas não há graça quando se constata que esse ceticismo ridículo na verdade reflete uma firme disposição de travar um assalto à razão. Tal arremetida pretende desmoralizar a diversidade cultural, própria de um ambiente livre e democrático, e impor, na base do constrangimento e da truculência, o pensamento único.

O Brasil sofreu essa terrível experiência durante a longa noite lulopetista, quando o PT aparelhou a máquina ligada à cultura, etapa fundamental de sua estratégia para se manter indefinidamente no poder. O Ministério da Cultura nos governos de Lula da Silva e Dilma Rousseff transformou-se em departamento de agitação e propaganda do partido. A dita “classe artística”, invocando-se o papel de porta-voz do povo, se insurgiu contra qualquer um que questionasse as práticas do PT. O presidente Michel Temer, que substituiu Dilma Rousseff, penou para reverter esse aparelhamento petista, sendo, por essa razão, hostilizado dia e noite, aqui e no exterior, pela claque de celebridades habituada aos obséquios de um governo camarada.

Bolsonaro foi eleito justamente como consequência da demanda da população pelo fim do aparelhamento lulopetista nas áreas de cultura e educação. Mas o atual presidente está fazendo exatamente o que Lula e seus sequazes fizeram, ao colocar em diversos postos da administração desses setores fundamentais pessoas cuja única qualificação, à parte a capacidade inesgotável de dizer bobagens e de desafiar os padrões de civilização, é a fidelidade absoluta ao chefe e a um projeto autoritário de poder.

Tome-se o exemplo de Sérgio Camargo, escolhido por Bolsonaro para presidir a Fundação Palmares, órgão responsável pela valorização das manifestações culturais e artísticas negras. Antes de ser indicado, Camargo, que é negro, havia escrito nas redes sociais que não há racismo no Brasil e que “a negrada daqui reclama porque é imbecil e desinformada pela esquerda”. Em lugar de desqualificá-lo para o posto de promotor da cultura negra, o que seria óbvio, essa declaração parece ter sido decisiva para sua nomeação, pois lá estava um sujeito disposto a reproduzir o discurso, tão caro aos bolsonaristas, segundo o qual os negros no Brasil se fazem passar por vítimas para auferir ganhos políticos, econômicos e sociais.

Outros nomeados para cargos na área de cultura não ficam atrás. O maestro Dante Mantovani, que chefiará a Fundação Nacional de Artes (Funarte), já disse que “o rock ativa as drogas, que ativam o sexo livre, que ativa a indústria do aborto, que ativa o satanismo”. Para Mantovani, não há “um único argumento ou prova da delirante esfericidade da Terra”. Já o novo presidente da Fundação Biblioteca Nacional, Rafael Alves da Silva, escreveu que “a Proclamação da República foi um golpe militar improvisado e injustificável” e que “o Brasil nunca mais se encontrou”, razão pela qual não há “nada a comemorar”.

A “política cultural” do governo Bolsonaro une terraplanismo, antirrepublicanismo e irracionalidade. A ignorância parece ter se tornado exigência curricular. Embusteiros são tratados como grandes pensadores, enquanto o conhecimento acumulado pela experiência humana é desprezado ou, conforme o raciocínio tosco desses apedeutas, associado a um complô comunista. A consolidação desse circo de horrores, em que figuras obscuras do submundo das redes sociais reacionárias são nomeadas para cargos relevantes na área cultural, será desastrosa para o País.