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Opinião|Oliveiros, meu herói da resistência

O convívio com Oli nos fez sentir orgulho por trabalharmos numa trincheira de liberdade

Atualização:

Muitas vezes me penitencio por não ter homenageado em vida algumas das pessoas que mais admirei. É exatamente com esse o sentimento que dou este pequeno depoimento sobre Oliveiros S. Ferreira, meu professor, colega e amigo, que faleceu no dia 21 de outubro último. De 1960 a 1962 fui seu aluno na cadeira de Política do curso de Ciências Sociais da Faculdade de Filosofia da USP. Tive o privilégio de trabalhar com ele por mais de 20 anos, entre 1967 e 1999, no jornal O Estado de S. Paulo.

Oli, como o chamávamos, depositava uma confiança quase ilimitada em nosso trabalho cotidiano, mesmo nos piores momentos da ditadura. Em minha avaliação, além de amigo, ele foi para muitos de nós uma espécie de mentor, de exemplo vivo de ética e competência jornalística.

Em dezembro de 1968, no auge de uma crise institucional, o jornal preparou o editorial Instituições em frangalhos, ditado por Julio de Mesquita Filho, contra a escalada autoritária, para ser publicado na edição do dia 13 dezembro, data do Ato Institucional n.º 5 (AI-5). O governo militar, entretanto, decidiu proibir a publicação desse editorial. Oliveiros comunicou logo à Polícia Federal que o jornal não obedeceria à ordem arbitrária – o que levou à apreensão de quase 90% da edição do Estadão de 13 de dezembro de 1968 antes mesmo de sair das oficinas, na Rua Major Quedinho.

A partir desse dia o jornal começou a viver a censura manu militare, exercida por dois censores da Polícia Federal na redação. Durante mais de três anos o jornal preencheu os espaços de matérias censuradas com “cartas de leitores” ou com anúncios da Rádio Eldorado. Em 1973, por sugestão de Oliveiros, ajudei a criar uma irônica “campanha em favor das flores” para denunciar que o Estadão estava sob mordaça. Nem todos os leitores entenderam a sutileza e passaram a aplaudir nosso amor pelas rosas.

A denúncia da censura só produziu efeito de verdade a partir de 2 de agosto de 1973, com publicação de Os Lusíadas nos espaços censurados. No Jornal da Tarde, tais espaços passaram a ser preenchidos com receitas culinárias. Por fim, o governo militar decidiu suspender a censura em ambos os jornais em 3 de janeiro de 1975, véspera do centenário do Estado.

Segundo o coronel Adwaldo Botto de Barros, presidente dos Correios, a suspensão da censura naquela data era um gesto de aproximação do governo Geisel e uma “homenagem aos cem anos de fundação do jornal”, que ganhou até um selo postal comemorativo do centenário. A aproximação entre governo e jornal ficou nisso.

Um dos trabalhos inesquecíveis que fiz no Estado a pedido de Oliveiros foi editar as 16 páginas que o jornal dedicou a relembrar um pouco da vida e da obra do dr. Julio de Mesquita Filho no dia de seu falecimento, 12 de julho de 1969. Venci o desafio, que me serviu de estímulo e incentivo, pois eu tinha apenas dois anos de jornalismo.

Com o Congresso fechado, sem habeas corpus, a imprensa e as artes sob censura, o Brasil de 1969 a 1975 viveu os terríveis anos de chumbo. Centenas de mandatos políticos foram cassados e milhares de cidadãos, presos e torturados. O cenário agravou-se ainda mais com a escalada dos sequestros e outras ações terroristas.

Na noite de 12 de março de 1970 vivemos na redação episódio típico de uma ditadura. Às 19 horas recebemos um telefonema que nos indicava o possível local onde poderíamos encontrar uma mensagem deixada pela Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), responsável pelo sequestro, na véspera, do cônsul japonês em São Paulo, Nobuo Okuchi. Dois repórteres e fotógrafo saíram rumo a uma praça no Jabaquara e, com a maior discrição, localizam o bilhete, atrás de uma lata de lixo.

De volta à redação, os repórteres nos deram conhecimento da mensagem em que os sequestradores exigiam a libertação de cinco presos políticos como condição para libertar o cônsul. Com autorização do jornal, repassamos uma cópia da mensagem a três emissoras de rádio – Bandeirantes, Jovem Pan e Eldorado –, que ainda não estavam sob censura. As emissoras divulgaram o conteúdo da mensagem, citando o Estadão como fonte da notícia.

Em menos de uma hora após a divulgação da mensagem dos sequestradores, um capitão do Exército invadiu a velha redação do quinto andar da Rua Major Quedinho. Com duas pistolas ostensivas na cintura, furibundo, olhos esbugalhados, ele se dirigiu logo a Oliveiros, aos berros: “Estamos numa guerra civil continental e vocês nos sabotam, apoiando os subversivos? Os comunistas querem dominar o mundo e vocês colaboram com eles”.

Com calma e habilidade, Oliveiros argumentou que o jornal tem não apenas o direito, mas o dever de publicar notícias. O capitão ironizou a lei e a Constituição e exigiu que lhe fosse entregue uma cópia do bilhete dos sequestradores. Depois de obtê-la foi embora.

Após alguns minutos de alívio, fomos tomados por uma terrível sensação de medo e de impotência coletiva diante do Brasil daqueles dias. Algo que eu definiria como uma amargura de cortar a alma. E que até hoje me faz lembrar dos textos de Brecht sobre o clima de terror imposto pelo nazismo ao se instalar na Alemanha dos anos 1930.

Hoje, ao relembrar Oliveiros, reflito sobre as cicatrizes que a ditadura nos deixou para sempre. Por sorte, as novas gerações foram poupadas dessa experiência. Penso que talvez por isso raros sejam os jovens de hoje que sabem de verdade o significado da ditadura e da censura como crime e violência contra a opinião pública.

Pode parecer estranho, mas os piores anos da ditadura que vivemos na redação do Estadão, em especial de 1969 a 1975, foram de longe os melhores anos da nossa vida. O convívio com Oliveiros naqueles anos nos fez sentir um grande orgulho por trabalharmos numa trincheira de liberdade como O Estado de S. Paulo. E nossa maior alegria era saber contra quem e por que lutávamos.

*Jornalista especializado em novas tecnologias