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Onde reside o perigo

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Por A. P. Quartim de Moraes
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Bem a seu estilo, durante o comício, perdão, a solenidade de lançamento do Vale-Cultura, o presidente Lula passou um pito nas empresas que, acredita, fazem mau uso da Lei Rouanet. No tom de quem tem ampla familiaridade com o universo dos livros, criticou, por exemplo, as edições luxuosas de "livro de fotografia enorme, pesado que é uma disgrama (sic) e que ninguém vê". Como todo mundo sabe, a Lei Rouanet está longe de ser perfeita. A renúncia fiscal que ela permite, no mais das vezes, resulta em recursos aplicados em projetos "culturais" que, das duas, uma: não precisariam de recursos públicos para se viabilizarem ou nada têm realmente de "culturais". Em muitos casos, na verdade, as duas coisas! De fato, que sentido faz, por exemplo, patrocinar com recursos públicos shows musicais de cantores que são campeões de vendas de discos, monólogos teatrais de estrelas da televisão ou temporada internacional de circo chique? Espetáculos para os quais, quase sempre, se cobram ingressos caríssimos. Nos países desenvolvidos, os recursos públicos para o setor cultural e artístico, geralmente abundantes, são dirigidos primordialmente para o fomento de atividades artístico-culturais. Estimulam-se artistas iniciantes, experimentações inovadoras. Parte-se do princípio sensato de que as grandes estrelas do mundo artístico podem ser deixadas por conta do mercado. É bem verdade que a realidade de uma nação em desenvolvimento, sem uma sólida formação cultural, é diferente. Mas certamente por isso mesmo o fomento das artes, e não o espetáculo, é mais carente e merecedor de incentivo governamental. Faz todo o sentido, portanto, condenar a aplicação da maior parte dos recursos provenientes de renúncia fiscal - dinheiro de todos - em artes e artistas que podem perfeitamente viver bem de seu próprio prestígio. Some-se a isso o fato de que existe uma enorme concentração dos recursos disponíveis (cerca da metade) nas mãos de uma insignificante minoria dos captadores desse benefício, quase todos estabelecidos na rica Região Sudeste. Mas, em se tratando de Lei Rouanet, cabe a pergunta: quem é que aprova, libera, habilita a captar recursos de patrocínio para projetos não prioritários do ponto de vista do interesse popular, de que é tão zeloso o nosso presidente? É o próprio governo federal, por intermédio do Ministério da Cultura (Minc). O presidente da República deveria ir mais devagar com o andor, portanto, quando se anima a alfinetar as corporações que trabalham com a lei de incentivo, acusando-as de se apropriar e se beneficiar de recursos que não lhes pertencem. A generalização é injusta. Por sua vez, o ministro da Cultura, Juca Ferreira, está descobrindo a pólvora quando repete que a aplicação dos recursos da Lei Rouanet é decidida "pelos departamentos de marketing das empresas", o que resulta em enorme distorção: acabam sendo patrocinados quase exclusivamente projetos que dão retorno comercial a essas empresas, sem levar em conta o conteúdo cultural. É verdade. Os departamentos de marketing fazem exatamente aquilo que deles se espera. Logo, não é por aí que a coisa se resolve. É evidente que as enormes distorções que a Lei de Incentivo à Cultura acumulou ao longo de 12 anos de existência tornam urgente a reforma desse instrumento vital para a produção e a circulação artística e cultural no País. O governo federal sabe muito bem disso e há anos o debate sobre essa questão corre solto, especialmente no âmbito do Minc. O resultado é que está prestes a ser encaminhado ao Congresso Nacional o projeto de uma nova lei de incentivo cultural. Segundo dados oficiais, hoje os investimentos do governo federal na cultura têm principalmente duas origens: os recursos do Tesouro investidos diretamente por meio do Fundo Nacional de Cultura (cerca de 15%, R$ 400 milhões em 2009)) e os provenientes da renúncia fiscal prevista na Lei Rouanet (aproximadamente 70%, R$ 1,3 bilhão em 2009). A ideia é aumentar substancialmente a participação do fundo, ou seja, dos investimentos diretos, deixando a parte menor por conta dos projetos incentivados, que passarão a dispor de novas faixas de isenção (hoje são somente 30% ou 100%). Fala-se até em inverter aquela proporção, que hoje favorece a Lei Rouanet. E os recursos provenientes do fundo serão direta e imediatamente repassados a cada projeto aprovado, enquanto os da renúncia fiscal continuarão a ser acessíveis só quando forem captados de um patrocinador. Com isso, e com o Vale-Cultura, que objetiva estimular o acesso dos assalariados aos produtos culturais, o governo federal está tentando lançar as bases, mais do que de uma simples lei de incentivo por meio da renúncia fiscal, a uma nova política cultural, fundada em três eixos principais: o fomento à produção cultural de qualidade, basicamente pelo financiamento direto; a acessibilidade aos produtos culturais, principalmente por meio do subsídio ou da redução do preço de ingressos; e, finalmente, o incentivo econômico à indústria cultural, aos produtores de arte/cultura. Esses três eixos deverão orientar, segundo o ministro Juca Ferreira, os critérios a serem aplicados pela comissão nacional que vai decidir sobre os projetos. Mas, ao contrário do que afirmou o ministro em recente entrevista à TV Brasil, são apenas parâmetros, referências. Muito pouco para que se tenha uma ideia clara sobre critérios para a aprovação dos projetos. E é aí que reside o perigo. Pois, entre outras coisas, no momento são os próprios agentes governamentais que aprovam projetos que fazem a festa dos "departamentos de marketing das empresas". A. P. Quartim de Moraes é jornalista e editor E-mail: apquartim@dualtec.com.br